São Paulo, quarta-feira, 24 de setembro de 1997
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Hirschman e a globalização

ANTONIO BARROS DE CASTRO

Até muito recentemente o debate entre economistas brasileiros podia ser descrito como polarizado entre os deslumbrados do mercado e as viúvas do intervencionismo.
Hoje, porém, a maioria dos mercadistas (sobretudo aqueles que vieram a assumir postos de governo) parece conformar-se com uma postura dita pragmática, que admite umas quantas intervenções, presumivelmente destinadas a corrigir falhas de mercado. Seus opositores, por outro lado, parecem-me inclinados a admitir que certas formas de intervenção perderam sentido na atualidade. Tarifas aduaneiras extremamente elevadas e empresas estatais na produção de aço, são exemplos de intervenções cujo número de defensores deve ter sido substancialmente reduzido.
Alguns veriam nesta redução da distância entre tradicionais adversários, mero desgaste das posições extremas. Aristotelicamente, o meio termo estaria voltando a prevalecer. Uma interpretação, bem mais interessante no meu entender, questionaria certas premissas do debate. Por um lado e ao contrário do que incansavelmente se repetiu, o recuo do Estado não implica a implantação do automatismo do mercado. Por outro, a redução do amparo e da proteção oferecidos pelos poderes públicos, não necessariamente acarreta o desmoronamento daqueles até então supostamente beneficiados pela ação dos poderes públicos.
Insistirei aqui apenas no primeiro ponto: as reformas liberais e a globalização (muito particularmente) não trouxeram consigo o império da mão invisível do mercado -com suas pressões anônimas e surdas. Recorro, no que segue, a duas provocativas ilustrações.
A cadeia Carrefour pediu à Nestlé alguns descontos extras. Diante de uma resposta negativa por parte da multinacional suíça, o Carrefour decidiu suspender a compra de uma série de produtos. As compras passaram de cerca de 250 itens para 25! Mas a retaliação não ficou aí. O Carrefour tirou a Nestlé (temporariamente) da lista, "não apenas no Brasil, mas também na França e em ouros países europeus, tentando aplicar pressão num contexto global". ("The McKinsey Quarterly" 1996, número 2).
Outro episódio: premida pelas duras circunstâncias vigentes no mercado internacional de suco de laranja, a Cutrale -maior produtora do mundo desta commodity- estabeleceu uma aliança estratégica com a Coca Cola, da qual adquiriu duas fábricas de concentrado. Segundo informações divulgadas pela direção da Cutrale, o investimento em território norte-americano se justifica pelo peso político de Washington. Mais precisamente: "O fato de nos transformarmos em uma empresa norte-americana nos dará alavancagem comercial e política. Existe uma grande diferença em vender suco para a Europa por exemplo, tendo por detrás os Estados Unidos". ("Gazeta Mercantil", 25/7/96)
Não é preciso realçar a distância existente entre a realidade sugerida por estes episódios e o limbo presumido por aqueles que pregam a restauração do "automatismo" do mercado.
Hirschman, num ensaio tornado clássico, estabeleceu uma elaborada distinção entre dois princípios: exit e voice. No primeiro caso, não há interação entre aqueles que decidem. Consumidores e empresas se informariam sobre os preços e decidiriam -compro, não compro; vendo, não vendo -na dependência de suas preferências. A globalização, vista por este prisma, nada mais seria que uma dilatação do espaço ou território das decisões (global sourcing). Outro seria o império do voice -onde os agentes se combinam, exercem pressões, fazem política e, claro, recorrem aos poderes públicos.
A moral da história pode ser resumida em poucas palavras. A globalização, longe está de instaurar o império da impessoalidade e da automaticidade das decisões econômicas. Há amplo espaço para o entendimento, a persuasão e o exercício de pressões. Sintomaticamente, o diretor da Cutrale acima evocado referiu-se à alavancagem política que pretendia obter, tornando-se empresa americana. É este o mundo em que os beatos do mercado vão perdendo espaço e avançam os pragmáticos. Evidentemente, melhor seria que se fosse além do pragmatismo. Mas esta é uma outra conversa.

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