São Paulo, sexta-feira, 26 de setembro de 1997
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O elogio do cinema prosaico

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

"A Ostra e o Vento" pertence a essa categoria rara de filmes que, vistos pela segunda vez, mostram melhor seu encanto ao espectador -já livre, então, de obrigações tais como seguir a história.
O filme de Walter Lima Jr. integra, ainda, a linhagem do cinema prosaico: aquele em que o interesse vem das pessoas e dos objetos mostrados, e não do fato de eles estarem sendo filmados.
É a sucessão precisa das imagens, a capacidade de criar atmosferas, de estabelecer uma progressão dramática, de expor uma situação e desenvolvê-la e de descobrir a poesia que está nas coisas que suscitam nosso interesse.
José (Lima Duarte) vive isolado em um farol, na companhia de seu auxiliar, Daniel (Fernando Torres), e da filha, Marcela (Leandra Leal). Chegando aos 13 anos, Marcela torna-se moça e deseja se libertar do lugar. O pai, no entanto, tentará fazer da ilha uma prisão. Em sua solidão, Marcela criará para si um amante imaginário: o vento que sopra com força no local.
A trama remete à mesma temática de "Inocência" (1982) -o desejo, o pai ciumento, a solidão, a integração homem/natureza-, retomada em parte em "O Monge e a Filha do Carrasco" (1996).
A essa continuidade temática, Lima Jr. acrescenta agora alguns novos elementos. O primeiro deles é a passagem de uma parte expositiva extremamente poética para um desenvolvimento dramático, culminando com o desfecho fantástico (não distante, na verdade, de um filme de terror).
Se controla essa evolução com mão de mestre, o cineasta empenha-se ainda em um difícil jogo de tempo, misturando o passado e o presente (às vezes em uma mesma cena), sem que por isso o espectador se sinta confuso.
Mas as virtudes narrativas são até tímidas diante daquilo que o filme oferece, plano após plano: a leveza dos enquadramentos (ajudados pela iluminação admirável de Pedro Farkas), a elegância discreta dos movimentos de câmera, a arte de evitar que a beleza das imagens -evidente, no entanto- macule a narrativa.
Para não dizer que o filme é absolutamente perfeito, existe um momento -quando um novo personagem entra em cena- em que a narrativa esmorece por alguns minutos: estamos no terço final, o filme chegou ao auge da tensão dramática e, com a entrada de Roberto, o louquinho, a narrativa tem de ser relançada.
Esse senão é irrisório, diante da avalanche de virtudes desse filme, capaz de evocar tanto o universo seco e comovente de Humberto Mauro (no início) quanto o mundo milagroso de Carl Dreyer, o dinamarquês, ou ainda a antológica série de horror que Val Lewton produziu na RKO dos anos 40.
Mas o filme interessa pelo que tem de próprio, que não remete a nenhum outro filme ou autor, que é ele mesmo: uma busca (encontrada) do equilíbrio, numa trama que gira em torno de uma alma desequilibrada, a de José.
Para chegar a esse resultado, não é absolutamente secundário que o diretor tenha reunido um grupo de atores de primeira linha e os dirigido com precisão de visionário.
Leandra Leal, Lima Duarte, Castrinho e Floriano Peixoto estão ótimos. Agora, Fernando Torres é um caso à parte. Esse ator "low profile", não raro subestimado, dá aqui uma das interpretações mais marcantes do cinema nesta década -entre atores e atrizes, entre nacionais e estrangeiros.

Filme: A Ostra e o Vento
Produção: Brasil, 1997
Direção: Walter Lima Jr.
Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco de Cinema - sala 2 e Estação Lumière 1

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