São Paulo, sexta-feira, 26 de setembro de 1997
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Olha o foco!

GERALD THOMAS
COLUNISTA DA FOLHA

No Brasil, o culto à desilusão e ao fracasso está chegando a extremos. Quer dizer, esse Brasil que é descrito pela imprensa. Em vez de fatos concretos, notícias de acontecimentos reais e uma relação direta com o mundo, o leitor brasileiro tem páginas e páginas de especulação política, fofocas e conchavos e, ocasionalmente, algumas denúncias.
O que deveria ser política é politicagem. Às vezes um único jornal estampa várias fotos do mesmo ministro em três, quatro páginas diferentes (as fotos estão ficando cada vez maiores). E a notícia por trás delas? Nenhuma.
Tudo especulação, fofoca. Geralmente é que deputado tal e tal fez um acordo com o partido tal e tal, ou o ministro tal e tal está de mãozinhas dadas com o governador tal e tal. É uma loucura vazia diária. Ou o presidente está de mal com esse ou aquele, mas foi visto ontem falando horas num tom risonho com um ex-inimigo.
O resto do jornal é feito de opiniões, pontificações, daquelas dezenas de pessoas que têm a razão na mão, representantes da moral e do purismo, cada um em seu canto neste país com a fórmula do sucesso que parece não acontecer.
Ah, sim, tem as colunas nos cadernos culturais, que é onde o culto à desilusão tem encontrado o seu berço esplêndido e as justificativas, as provas filosóficas do eterno fracasso político, social e cultural.
O colunismo da desilusão... Essa ridícula glorificação do passado, de uma "época que não volta mais", nada mais é do que uma xenofobia mal resolvida e uma terrível sensação de fracasso pessoal. Mas o leitor certamente é embalado por esse tom demagógico e saudosista. E o resultado desse acúmulo de desilusões -Deus me livre!- pode levar toda uma população a sentar no meio-fio e chorar, chorar por tudo o que eles não são e nunca chegaram a ser. Ora, gente! Olha o foco!
Mas tanto saudosismo pode dar naquilo que, em linguagem militar, chama-se de "campanha de humilhação do inimigo". Ou seja, tanto fracasso acumulado e constatado pode dar numa inveja venenosa, e não há alvo mais eficaz do que a generalização.
Ah, nada conquista mais corações do que a criação de um inimigo que possa ser comum a todos, de preferência um que esteja fazendo sucesso. Se o jargão puder usar os termos "imperialismo" ou "colonialismo" então, a campanha já estará quase perfeita e será, instantaneamente, endossada pela imensa legião de frustrados e reclamadores do nada. Ora, vão à merda!
O último acinte que li chamava todo o cinema americano de "escroto". Isto é, todo o cinema americano. Steven Spielberg, Woody Allen, Tarantino ou Spike Lee, todos na mesma lata? Todos eles eram o "cinema escroto americano".
O terrível dano que o colunista da desilusão pode causar é o de conseguir justificar como conchavo, politicagem, tramóia e concubinagem com o poder tudo aquilo que deu certo no mundo.
O cinema americano é escroto porque (1) tem dinheiro, (2) é dominado por judeus, (3) usa a máquina política poderosa para "se impor" nos outros países, (4) a máquina política é que usa o cinema para exportar sua imagem de poder.
Ah! De novo, a tática militar de propaganda. Apagam a cara do indivíduo e criam uma nacionalidade inimiga/fantasma. Somem com o artista, o pensador, o sujeito simples da rua, o pai de família e surge, em vez dele, uma multidão ideologicamente contaminada pelo diabo.
Exemplo? Olha como nós vemos o Iraque de Saddam Hussein. O colunista da descrença consegue fazer desaparecer o artista, o indivíduo, aquele que passa a vida criando, se dedicando à construção de novos vocabulários e o encaixa sob as mais absurdas legendas, como essa, o "escroto cinema americano".
Mas por que a linguagem da desilusão dá tão certo? Talvez porque ela traduza e universalize o sentimento de impotência da grande maioria que olha, como sempre olhou, para a cultura com raiva. Afinal, grande parte da cultura "de vanguarda", resmunga a massa das perdidas ilusões, é essa coisa enigmática, ininteligível, não é?
Vou citar um trecho de um texto genial de Hélio Oiticica, de 1973, onde ele manda à merda os pontificadores lamurientos daquele tempo. Diz Hélio: "A falta total de caráter floresce hoje no Brasil -não me refiro somente a "cultura"- e ela limita e amesquinha tudo, incluindo os lados ético-político-social de onde nascem as necessidades criativas, mais particularmente os hábitos inerentes à sociedade brasileira: cinismo, hipocrisia, ignorância concentram-se nisso que chamo de convi-conivência: todos "se punem", aspiram a uma "pureza abstrata", estão culpados e esperam o castigo. Que se danem!"
Helio acertou na mosca. O Brasil não pode perder tempo em se lamentar. Lamentar o quê? Tudo aqui é, como sempre foi, uma experimentação, uma exuberância. Aqueles que acham que faziam a "grande arte" nada mais são do que pontificadores profissionais. E sua artezinha desapareceu na história porque não enxergou o mundo. O mundo de hoje é melhor que o de ontem. E o artista nasce, como sempre nasceu, do desrespeito pelo passado, da fome pelo futuro.
As grandes questões não mudaram e sempre serão pequenas demais para serem notadas ou grandes demais para serem entendidas. O artista flutua tentando inventar parâmetros que interpretem essas questões. Afinal, ainda existe um "monstro" aí fora chamado universo, que nos exige uma humildade indescritível. E sabemos que só podemos nos comunicar com ele por meio do exercício da interpretação, essa que os artistas buscam com poesia e humor.
O Brasil é muito peculiar, pois parece uma mistura desse imenso universo com o artista que o interpreta.
Glorificar o passado é de uma arrogância atroz, por isso pressupõe que, nele, as grandes questões fundamentais tenham sido muito bem respondidas por aqueles que hoje reclamam. Não foram, como nunca serão.

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