São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997
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Tarefa é promover "guerra contra FHC"

DA REDAÇÃO

Para Mangabeira, candidatura do ex-tucano precisa criar turbulência política e ideológica no país para ter chance

Nesta parte da entrevista, Roberto Mangabeira Unger explica o que pensa do projeto da candidatura Ciro Gomes à Presidência, de sua viabilidade e fala como levar à prática seu projeto político e ideológico.
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Folha - Ciro Gomes já disse que ninguém é candidato de si mesmo. Qual é o agente coletivo capaz de traduzir em alternativa política essa sua ação transformadora?
Mangabeira - Há uma massa desorganizada no país, uma classe média desorganizada e o povão metido na economia informal. O que falta é uma organização política, que precisa de um ideário. É preciso que se forme um movimento de opinião, de um partido latente, no país para possibilitar a criação política dessa alternativa.
Folha - Como isso funciona na prática? Com um líder carismático que comprasse esse conjunto de idéias, essa "engenharia social"?
Mangabeira - Tem de haver um projeto de política nacional, política nos partidos, política nos governos; uma movimentação na sociedade civil e tem que haver a formação de um ideário, ardor.
Folha - O sr. estaria constituindo esse ideário nas reuniões com o grupo de políticos latino-americanos de centro e esquerda?
Mangabeira - Sim. Desde a época da Cepal não há uma alternativa panlatino-americana que faça frente ao ideário oficial. Na verdade, essa discussão nossa não é especificamente latino-americana. É fundamentalmente a mesma discussão que começa na Índia, na China, na Rússia, na Indonésia, grandes países marginalizados, como o Brasil. São os grandes centros potenciais de criação de alternativas. Cada um deles está inibido por razões diferentes, mas cada um ainda conserva a idéia de que pode ser um mundo diferente.
Folha - Mas, enfim, esse projeto começa com uma candidatura que amalgama uma insatisfação de classe média com uma massa de excluídos, é isso?
Mangabeira - Ele tem três começos. Um é a formação de um movimento de opinião no país. Forma-se pouco a pouco, pelo proselitismo, pela formulação. Segundo, por essa movimentação na sociedade civil e, terceiro, por um projeto de política nacional.
Há aí um tema psicológico que queria introduzir, uma idéia bíblica: "Quebrarei as coisas grandes com as coisas pequenas". Você produz a esperança, dando exemplos, pequenos exemplos de mudança e de cultura.
Vejo isso agora, no caso concreto da classe política brasileira, com quem venho convivendo. Há seis semanas, o grau de fechamento psicológico era completamente diferente do que é hoje. Essa pequena movimentação sucessória, essa mera ameaça de uma candidatura, mudou o quadro psicológico dessas pessoas e não acho que seja diferente para o resto do país. Criando um pequeno trauma, um pequeno desvio, você produz um élan que pode ser mobilizado para a etapa seguinte.
Folha - Esse élan não é abstrato, no sentido de não estar direcionado para lugar nenhum? Pode ser, por exemplo, criado por uma liderança carismática de extrema direita. Vamos exagerar.
Mangabeira - Você está exagerando. É verdade que há um elemento flutuante, mas ele não sobrevive muito tempo se não tiver um veículo específico que lhe dê um determinado conteúdo.
Folha - E qual conteúdo?
Mangabeira - Mas você está reduzindo só ao nível da política, que é apenas parte da história. O que acho é: precisamos ter um ideário, precisamos ter a movimentação da sociedade civil e precisamos ter um projeto político.
Há um desejo imenso da parte politicamente consciente e ativa do país de ter uma alternativa a esse caminho único humanizado, a esse diário oficial, que não seja a mera defesa dos resíduos do setor público, que não seja a mera defesa dos resquícios do projeto nacional-popular. Há uma imensa vontade disso e o espaço objetivo criado pelo regime presidencial brasileiro para que essa vontade se manifeste de forma plebiscitária.
Folha - A sucessão presidencial.
Mangabeira - Aí está uma oportunidade política concreta e digo isso com cautela: não acho que esse caminho seja suficiente. Agora muito concretamente: estávamos nos encaminhando para um jogo em que o Planalto estava organizando a sucessão como uma contenda entre FHC e Lula, com resultado previsto. O efeito psicológico sobre a classe política era de depressão generalizada. Mesmo os líderes do PT me davam a impressão de que estavam conformados antecipadamente com a derrota. Há dois anos discuto com eles a tese da candidatura dual. Nós, da oposição, deveríamos ter duas candidaturas, contra o discurso geral, que é o discurso da unidade: se nos dividirmos, perdemos.
Folha - Por que duas?
Mangabeira - Por duas razões. A primeira é a prática eleitoral. A candidatura do PT acabaria sendo o Lula mesmo, uma candidatura para perder. No momento, uma grande parte do país, potencialmente opositora ao governo, não votará em Lula nem no PT. Estava se armando um jogo de perdedor e precisávamos sair dele.
O segundo é o aspecto substantivo programático. Quando apresentava para os petistas a idéia de que eles deviam romper decisivamente com a defesa dos interesses corporativos, eles respondiam: você quer que abandonemos essas alianças antes de termos outras e nos arriscamos a ficar sem nada. Eles ainda estão aí, inibidos ou abraçados a essa ambivalência. Era preciso que viesse alguém de certa forma fora do sistema para tentar reconstruir o quadro partidário a serviço de uma proposta como a nossa. É assim que vejo a candidatura emergente do Ciro Gomes.
Folha - Ele concorda com essa análise do quadro sucessório?
Mangabeira - Não estou falando como porta-voz do Ciro Gomes, que talvez concorde com parte do que digo. Acho que a candidatura dele tem três papéis. Um é ser a voz política dessa proposta que mostra claramente ao país que não é preciso escolher entre a doutrina dos 10% e a defesa envergonhada dos resquícios do nacional-populismo. Nem é preciso escolher entre a defesa da estabilidade da moeda e a volta da inflação.
Segunda tarefa: potencializar politicamente a inconformidade da classe média, dando-lhe oportunidade para exprimir politicamente a sua inconformidade.
Terceira tarefa: fazer guerra. Guerra contra o governo e guerra contra a pessoa do presidente, mostrando ao país quem ele é. Essas são as três tarefas do candidato e eu estava, e estou, convencido de que o PT por ora não pode desempenhar bem nenhuma das três.
Então, a situação eleitoral existente no Brasil agora é a seguinte: metade do país apóia o governo friamente e metade friamente se opõe ao governo. A maior parte da simpatia com o governo é condicional, fria, e a maioria da simpatia com a oposição é condicional e fria. O quadro subjacente é um quadro volátil. É um quadro de ceticismo, é um quadro de descrença. O presidente é cético e confortável e a maioria dos brasileiros está cética e desconfortável -e esse é um quadro em que tudo pode acontecer em política, num regime presidencial clássico, plebiscitário.
Folha - Mas esse inconformismo manifesto de modo plebiscitário pode optar por uma alternativa que não tenha base de sustentação política pós-eleição.
Mangabeira - Há o perigo de chegar ao poder, por assim dizer, cedo demais. Quer dizer, antes de haver se formado no país um ideário e uma consciência que sustentassem essa direção, o que tornaria improdutivo o exercício do poder.
Folha - Mas, enfim, o Ciro vai sair para ganhar?
Mangabeira - Que tipo de pergunta é essa? Sair para ganhar quer dizer o quê?
Folha - Ele sai candidato pensando em ser presidente mesmo?
Mangabeira - Olha, a minha convicção... agora você me pergunta o que acho que seja a visão dele. A visão dele...
Folha - O que ele disse ao sr.?
Mangabeira - Não, isso não. O que me parece ser a visão dele é que é muito difícil ganhar, mas possível. Pessoalmente -e aí divirjo dele-, acho que ele está subestimando a possibilidade de ganhar. Ele acha possível ganhar, está determinado a ganhar, mas acha extremamente difícil...
Folha - E ele vai fazer o que puder para ganhar. É isso?
Mangabeira - A intenção dele é ganhar. Se ele for candidato, é para ser o próximo presidente. Acho que o cenário é quase ideal para o tipo de luta que imagino, porque o discurso de FHC é: se não for eu é a inflação, se não for eu é o Lula. Esses são os dois discursos dele.
Há o problema da estabilidade e do desenvolvimento. A estabilidade é necessária, o país quer a estabilidade. Mas a estabilidade está montada sobre expedientes que impedem o desenvolvimento e o país quer que a estabilidade seja reconstruída sobre bases que permitam o desenvolvimento. Não é possível enfrentar essa problemática dentro do esquema de alianças do governo atual. O regime tem no seu cerne uma aliança entre a parte internacionalizada da elite brasileira, sobretudo o setor financeiro, e uma certa política do Nordeste. Uma candidatura alternativa de oposição desmonta o discurso dessa aliança e potencializa a rebelião do país.
Folha - Tem sido feita uma comparação entre Ciro e Collor. Além das características pessoais: a candidatura Ciro, como a de Collor, tem pouca ou nenhuma expressão partidária, talvez seja capaz de juntar uma insatisfação de classe média com os descamisados ou excluídos, o nome que se der. E é uma candidatura que quer inflamar, quebrar o gelo de uma eleição morna. O que o sr. acha disso?
Mangabeira - Acho que essa analogia é absolutamente correta. O que é falsa é a interpretação do significado moral e político. A eleição do Collor significou uma coisa característica no regime presidencial brasileiro, como foi a eleição do Jânio Quadros. Significa que há, no sistema presidencial brasileiro, um lugar para alguém que se apresenta como o agente plebiscitário desse inconformidade, de alguém que não é visto como o embaixador dos interesses organizados da sociedade arrumadinha, dessa sociedade européia de São Paulo. É uma pessoa que aproveita o mecanismo da eleição presidencial para se comunicar com a maioria desorganizada do país e para mobilizá-lo em torno de um projeto. Essa operação é necessária no Brasil, porque, se não fosse isso, não haveria nada. Haveria o governo das elites. Essa operação necessária é também muito perigosa e é muito sujeita a desvios, a ilusões, a mentiras, a frustrações. Então, o que nós temos que fazer? Nós temos que aproveitar esse potencial plebiscitário em prol de uma proposta de mudança institucional ou institucionalizada, portanto, duradoura para que não se esgote numa aventura frustrada....
Folha - E qual a garantia disso?
Mangabeira - O processo é que tem de construir essa garantia. Quer dizer, na dinâmica de uma campanha como essa, de uma alternativa como essa, vejo três etapas. A primeira: assegurar a base jurídica da candidatura pela filiação a um partido que atrapalhe o menos possível a construção da base política. A classe política está agora falando como se fosse uma base política. Eles negociam um com o outro em volta de uma mesa como se cada um representasse uma fatia do eleitorado brasileiro. É uma fantasia completa.
A segunda: a construção da base política. Levar a causa ao país, tentar comovê-lo, levantar a esperança. O país que diga sim ou não.
A terceira: a adesão de partidos maiores à candidatura já em resposta a essa comoção nacional. É assim que ocorre o processo de aproveitamento do elemento plebiscitário do sistema.
Então, esse itinerário é que leva a um acúmulo de compromissos e esclarecimentos que junto com a pessoa do candidato ou o propósito do candidato começam a dar um rumo. Um rumo, porque isso aí tem de ter como contrapartida um desmonte e a reconstrução do quadro partidário.
Mas que o risco existe, existe, é inerente. Acho que no caso do Ciro Gomes o risco é que ele não tope fazer tudo, não tope entrar nisso, porque isso é um inferno.

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