São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997
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Anatomia dos ataques especulativos

LUCIANO COUTINHO

Quando a trajetória de uma taxa de câmbio (taxa fixa ou banda cambial) não infunde confiança quanto à sua sustentabilidade -ou, mais ainda, se ela é majoritariamente considerada insustentável-, existe uma probabilidade crescente de ocorrência de um ataque especulativo.
A literatura econômica especializada a respeito da lógica e da sequência dos ataques especulativos avançou bastante nos últimos anos e já permite codificar algumas proposições. Desde logo, o grau de fragilidade da trajetória cambial é avaliado pelos agentes econômicos a partir de uma análise das tendências fundamentais do balanço de pagamentos, a saber: 1) natureza e tamanho do déficit em conta corrente com o exterior (absoluto e relativo ao PIB); 2) trajetória passada desse déficit e expectativa quanto ao seu comportamento no futuro; 3) volume acumulado das dívidas e passivos externos; 4) nível e grau de solidez das reservas externas do Banco Central; 5) regras de intervenção, arsenal de controles monetários e cambiais e reputação do Banco Central.
É evidente que um déficit externo elevado e persistente no tempo tende a aumentar as chances de um ataque especulativo contra a taxa de câmbio, mesmo que as condições internacionais de liquidez e de crédito sejam favoráveis ao financiamento desse déficit.
O caso do Brasil foi colocado sob foco dos refletores nos últimos dias por ocasião da reunião anual do FMI em Hong Kong. A pergunta relevante é se o país seria a "bola da vez". A resposta por enquanto é não, pois as condições teóricas que viabilizariam um ataque especulativo não estão maduras (ainda).
Mesmo na presença de um déficit de confiança na trajetória da taxa de câmbio (o que é, sem dúvida, o nosso caso), para que um ataque especulativo seja bem-sucedido -do ponto de vista dos grandes especuladores que lideram o processo- são necessárias certas condições. A questão pode ser encarada como uma guerra entre os especuladores e o Banco Central em que, num certo momento, os primeiros sejam capazes de desfechar um ataque rápido e fulminante, que drene as reservas de divisas da autoridade monetária e a impeça de sustentar a banda cambial. Uma vez nocauteado o Banco Central, uma forte e abrupta desvalorização da taxa de câmbio permite aos especuladores realizar os seus lucros vendendo as suas posições apreciadas em divisas fortes, amealhadas antes do ataque. Há sempre, por isso, uma tendência ao "over shooting" -isto é, a taxa de câmbio se desvaloriza profundamente e depois se aprecia parcialmente à medida em que os próprios especuladores oferecem as suas posições de volta ao mercado.
Mesmo quando o Banco Central dispõe de reservas elevadas, um ataque especulativo sobre a banda cambial é possível desde que exista uma sensação difundida nos mercados financeiros de que o ajuste cambial será, em algum momento futuro, inevitável e significativo. Paul Krugman (1) bem demonstrou que, neste caso, para que o ataque especulativo se torne plausível é necessário que o Banco Central perca antes, paulatinamente, boa parte de suas reservas.
Essa sangria do BC (com correspondente acumulação de posições pelos especuladores) tende a ocorrer por etapas. O Banco Central tentará defender a banda cambial vendendo divisas e/ou direitos em divisas (i.e., títulos públicos com cláusula cambial) em sucessivos "rounds", mas, à medida que a maioria dos agentes passa a perceber que os riscos cambiais estão crescendo, diminuem os fluxos de entrada de capitais e cai drasticamente a disposição de se endividar adicionalmente em moeda estrangeira.
Ao contrário, esses agentes temerosos passam a engrossar o cordão dos especuladores, procurando aumentar suas próprias posições ou reduzir suas dívidas em divisas fortes. Nesse contexto, dado o déficit corrente, fica impossível para o Banco Central recuperar as perdas totais incorridas em cada etapa, de tal forma que o processo avança até o ponto em que os especuladores ganham o poder de comandar o mercado, cujo respaldo é essencial para gerar o clima de pânico que acompanha o ataque final e definitivo.
Além das intervenções diretas no mercado de câmbio o Banco Central dispõe de outros meios e instrumentos para tentar bloquear ou retardar um processo do tipo descrito acima, e.g., controles sobre os capitais, aperto de liquidez via compulsórios bancários, subida da taxa interna de juros. A prontidão, competência e firmeza da autoridade monetária no uso desses mecanismos pode dissuadir ou neutralizar as investidas especulativas. Assiste portanto razão ao presidente do BC, Gustavo Franco, em resistir às recentes recomendações do FMI de remover os controles cambiais que o nosso Banco Central ainda dispõe.
É preciso lembrar, porém, que à medida que o tempo passe e o déficit externo se mantenha elevado e crescente, a confiança dos mercados na sustentabilidade da atual política cambial pode vir a ser seriamente erodida. O atrativo programa de privatização decerto permite ganhar tempo, mas à medida que boa parte deste seja executado, crescerá a expectativa quanto ao futuro.
Mudanças nas condições globais de juros e liquidez também podem afetar negativamente as expectativas. Em síntese, embora não seja plausível hoje, está em curso um processo de vulnerabilização a um ataque especulativo em um ponto futuro. É hora de tomar medidas para preveni-lo, implementando políticas capazes de infletir o crescimento do déficit externo.

(1) Vide Krugman, P. e Rotemberg, J., "Speculative attacks on target zones", em Exchange Rate Targets and Currency Bands, Cambridge University Press, 1992.

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