São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997
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CARL LEWIS

ALAIN BILLOUIN
DO 'L'ÉQUIPE'

Como todas as manhãs, Carl Lewis levantou-se às 7h, em sua mansão em um elegante bairro na região oeste de Houston (EUA), para tomar seu café da manhã ao lado da piscina.
Em seguida, desprendeu seu velocípede vermelho da parede da garagem e partiu para umas pedaladas por seu trajeto habitual nas redondezas.
Para Lewis, 36, nove medalhas de ouro olímpicas -e outras oito em Mundiais-, uma nova vida começa, e ele diz esperar que seja tão rica e apaixonante como a precedente.
O velocista conquistou seus quatro primeiros ouros olímpicos em 1984 (Los Angeles), igualando feito de seu compatriota Jesse Owens (1936, Berlim).
Lewis foi soberano nos 100 m, 200 m, revezamento 4 x 100 m e no salto em distância.
Em 1988 (Seul), foram outros dois ouros, nos 100 m (com a desclassificação do canadense Ben Johnson, por doping) e salto em distância.
Em 1992 (Barcelona), não correu os 100 m e 200 m e foi vencedor no revezamento 4 x 100 m e no salto em distância, quando saltou 8,72 m, sua melhor marca em Jogos Olímpicos.
Em sua última Olimpíada, no ano passado (Atlanta), teve seu último primeiro degrau no pódio, novamente no salto em distância.
Somente outros três atletas conquistaram nove medalhas de ouro em Olimpíadas: a ginasta ucraniana Larissa Latynina, o nadador norte-americano Mark Spitz e o fundista finlandês Paavo Nurmi.
Lewis despediu-se das pistas no dia 13 de setembro, um sábado, ao correr em Houston, em exibição no intervalo de um jogo de futebol americano, o revezamento 4 x 100 m, ao lado de Mike Marsh, Leroy Burrel e Floyd Heard.
Lewis, nesta entrevista, fala sobre a aposentadoria e o futuro, com sensibilidade, autenticidade, animação e bom humor.
"Foi uma longa caminhada, e fiz tudo do meu jeito. Agora, quero dar motivação a novos esportistas."
*
Pergunta - Carl, de repente você decidiu deixar um universo grandioso: é um momento difícil de se enfrentar?
Carl Lewis - Sempre digo que, na vida, em um determinado momento, qualquer coisa que amamos profundamente vai ter fim.
Às vezes, o momento é escolhido. Às vezes, não. O importante é saber como poder assimilar a pancada.
Dezoito anos depois de minha chegada, ainda adolescente, à Universidade de Houston, eu me deparei, naquele sábado, com um dia de adeus programado já havia um ano em meio.
Foi realmente especial: com o sentimento de satisfação e, ao mesmo tempo, de perturbação.
Pergunta - Naquela tarde, ao estar na linha de largada, no que você pensou?
Lewis - Eu percebi que as pessoas choravam de alegria. Eu olhava para a linha e me dizia: "Acima de tudo, não posso deixar o bastão cair. Essa corrida não vou poder recomeçar no dia seguinte(risos)".
Pergunta - Neste momento você não sente um grande vazio, ao considerar a dimensão de sua carreira?
Lewis - Não, porque minha carreira foi muito mais do que correr e saltar. Eu descobri o mundo e as pessoas, multipliquei minhas experiências. Isso ampliou meu conhecimento dos outros e de tudo o que está a meu redor.
Pergunta - Você teve uma vida doce com toda essa glória, todo esse dinheiro...
Lewis - Nem tanto, porque minha vida foi toda construída em torno das competições, com muitas exigências. Mas, como um todo, eu trabalhei, durante 18 anos, com o mesmo treinador -Tom Tellez-, com o mesmo ambiente de treinamentos na Universidade de Houston, com o mesmo empresário -Joe Douglas- e com os mesmos companheiros -Burrell, Marsh, Heard.
Os resultados e a recompensa vêm de tudo isso.
Pergunta - Você não tem mais do que esses amigos...
Lewis - Correto. Muita gente no meio me admira, muitos me adoram e sempre me respeitaram. Mas também há os que não gostam de mim e dizem e escrevem isso. Eu sempre tentei dar o máximo em todas as pistas. Meu pai, Bill, que morreu de câncer em 1987, tinha me ensinado esse princípio. É por isso que penso sempre nele e o sinto incrivelmente presente. Antes de minha última corrida, eu o procurei, instintivamente, por todo o estádio. Sentia que ele estava lá.
Pergunta - Foi a ambição que estimulou sua carreira?
Lewis - Não. Eu diria que, no início, foi a paixão e, acima de tudo, a perseverança.
Tenho como exemplo claro o que pude fazer no salto em distância. Ao chegar a Houston, em 1979, eu tinha problemas em um dos joelhos e estava praticamente condenado a não ser mais do que um velocista. De modo algum poderia saltar. Mas Tom Tellez me deu o senso do trabalho e do rigor. Foi de uma paciência exemplar, e eu ganhei quatro ouros olímpicos no salto em distância.
Mas a medalha mais importante foi a primeira, nos 100 metros, nos Jogos de Los Angeles, em 1984 -a que meu pai levou com ele para o além.
Pergunta - Você não se questiona se teria condições de disputar, em Sydney-2000, mais uma Olimpíada?
Lewis - Não. Mentalmente, eu tinha me aposentado após os Jogos de Atlanta, depois de minha quarta vitória no salto em distância. Você sabe, eu já podia ter me retirado havia 13 anos, quando eu consegui, em Los Angeles, quatro títulos olímpicos, como Jesse Owens.
Pergunta - Toda sua carreira foi marcada por referências a Owens (James Cleveland Owens, 1913-80, atleta negro, vencedor de quatro medalhas olímpicas na Olimpíada de 36, em Berlim, dominada pelo nazismo)...
Lewis - Eu o encontrei quando ainda era pequeno, em um estádio da Filadélfia, porque meu pai o conhecia. Ele tinha 57 anos e me encorajou.
Nós nos vimos de novo uma dúzia de vezes em outras competições. Então, eu já sabia tudo de sua carreira, de suas façanhas nos Jogos de 1936, e ele sabia também que falavam de mim no colegial.
Ele teve, então, instintivamente, uma influência que não parou de crescer.
Pergunta - Até o fim de sua carreira?
Lewis -Sim. E mesmo hoje, porque quando eu penso em Owens e na felicidade de ter seguido suas pegadas, percebo qual será meu papel amanhã junto às crianças que desejam tornar-se grandes atletas como eu.
O caminho está traçado: devo ir de encontro aos jovens. Minha missão é clara. Eu irei a Sydney (Austrália), no início do ano que vem, para as clínicas pré-olímpicas.
Pergunta - Você tem outros projetos?
Lewis - Eu tenho um contrato publicitário com a Nike (empresa de material esportivo) até 2003. Eu lançarei nos mercados norte-americano e europeu um equipamento de ginástica, a Carl Lewis bicycle (bicicleta do Carl Lewis), e publicarei livros sobre como manter a forma. Também tenho minha linha de vestuário.
Tenho paixão pelo cinema e quero participar de séries de televisão. Estou em contato com produtores de Nova York para isso.
Também continuarei a frequentar o campus da Universidade de Houston, para me manter em forma e ver os companheiros. Dar motivação aos jovens esportistas. E também para mostrar a eles que um homem velho pode fazê-los comer poeira (risos).
Pergunta - E pelo lado da federação americana?
Lewis - Sinceramente, eu estou contente de o novo presidente, Craig Masback, que foi também um excelente atleta, estar dizendo que haverá reformas.
Ele tem a visão perfeita do que é preciso fazer em nível de desenvolvimento, promoção, organização geral. Eu batalhei em vão, durante anos, contra a federação. Por causa dela, a situação, hoje, é catastrófica.
Os grandes esportes -o futebol americano, o basquete, o beisebol- nos humilham. Em audiência de público, o atletismo está em 35º lugar. De mim, dizem que sou o indivíduo que ganha medalhas nos Jogos. E nós temos a melhor atleta do mundo, Jackie Joyner-Kersee, a quem a federação jamais valorizou. O atletismo, aqui, está um desastre.
Pergunta - Você não está exagerando um pouco?
Lewis -Não. Por que a Europa, que também tem seus esportes tradicionais, e dezenas de atletas brilhantes, ama tanto o atletismo?
Fiquei assombrado, outro dia, de ver tanta gente no estádio de Berlim. Na Europa se fala, e muito bem, do atletismo. Aqui, é preciso reconquistar a mídia com a organização de grandes eventos.
Pergunta - Você criticou duramente a Iaaf (federação internacional de atletismo) e tratou Nebiolo (Primo, presidente da entidade) como ditador. Por quê?
Lewis -Fiquei consternado ao saber que, em um momento no qual tantas suspeitas e desconfianças pesam sobre o uso de doping no atletismo, as punições para os infratores foram reduzidas. Já é inquietante ver que certos atletas pensam que é necessário se drogar para progredir. E, se as autoridades não cumprem seu trabalho, quem irá cumprir? Ben Johnson foi o suficiente!
Fiquei igualmente aturdido ao ver que eles se dispuseram a estender o Mundial por 13 dias para aumentar os ganhos financeiros. É a contrapropaganda. Para mim, é preferível um campeonato em quatro dias. Nebiolo ditador? Sim, eu confirmo: é um homem que decide sozinho e, desse modo, pode fazer muitas opções erradas.
Pergunta - Você deseja informá-lo disso?
Lewis - Para mim, a página já está virada. Eu não tenho mais campanhas a fazer. Eu quero apenas ajudar. Parto com o espírito livre e em paz. Tenho, acima de tudo, vontade de me dar prazer para o resto da minha vida. E a vida é ainda bela para mim.

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