São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997
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A formação do estilo brasileiro

JOÃO ADOLFO HANSEN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Na fina tradução de Pérola Carvalho e Alice Kyoko, com revisão e atualização bibliográfica de Paulo Roberto Dias Pereira, 25 anos depois da sua primeira edição italiana, a "História da Literatura Brasileira", de Luciana Stegagno Picchio, alia graça e inteligência à simpatia generosa pelo Brasil. O livro pretende ser uma interpretação da literatura brasileira "válida em todos os níveis" (pág. 22), propõe a autora, conhecida intelectual que, em 1994, já brindou o leitor brasileiro com a edição da poesia completa e da prosa de Murilo Mendes.
Na "Introdução", afirma que a mera iniciativa de escrever uma história da literatura implica "o reconhecimento da legitimidade de considerar os fatos literários sob um ângulo histórico" (pág. 20). A obra é uma "história estilística", que chama de "história do como", ou história imanente da estrutura de gêneros e formas literárias, que opõe a uma "história sociológica", "história do por quê" ou história dos condicionamentos e determinações sócio-político-econômicas das letras. Fazendo "história estilística", utiliza materiais heterogêneos, visando a duas finalidades, a defesa da tese de que desde o século 16 existe no Brasil uma "tradição estilística autônoma" e a narrativa do processo de formação da mesma até agora. Similar ao de Afrânio Coutinho, aqui o conceito de "literatura brasileira" é generalizante: complexo de textos literários em língua portuguesa produzidos no Brasil do século 16 até hoje por escritores que agem dentro de "coordenadas culturais brasileiras".
Emoldurada por recortes geográfico-culturais, a matéria letrada é ordenada cronologicamente em 17 capítulos, de 1500, ano da "Carta" em que Caminha descobre a suposta inocência do selvagem, até 1996, quando Paulo Coelho descobriu leitores. O texto discute obras geralmente excluídas das histórias literárias brasileiras, caso da interessante monografia "Ficção Científica, Esoterismo e Astrologia como Últimas Utopias" (pág. 651). Também trata da novíssima produção de poetas, teatrólogos, escritores e críticos dos anos 1970/90, com incursões pela música popular e o cinema (págs. 690-693). A edição brasileira amplia a exaustiva bibliografia da primeira com textos críticos publicados de 1972 até 1996. É excelente a idéia de anexar bibliografia geral e específica a cada capítulo, além de um rol de autores, com notícias biobibliográficas.
Caracterizando as letras locais como "tradição estilística autônoma" (pág. 21), a autora afirma que o conhecimento do "estilo brasileiro" (pág. 21) que atravessa "transversalmente" (pág. 700) seus conteúdos e formas permitiria superar a dicotomia "colonial/nacional" sistematizada por Sílvio Romero e José Veríssimo na esteira do nacionalismo romântico, pois julga que a mesma empobrece a tradição literária, privando-a de obras indispensáveis para a compreensão "do que veio depois" (pág. 19).
Conhece o risco de aplicar um conceito esclerosado e condicionante de "brasilidade" e tenta evitá-lo buscando em cada secção cronológica, que classifica por meio de uma categoria estilística, como "Barroco", "Romantismo", "Simbolismo", o que chama de "modalidade brasileira das escolhas estéticas" (pág. 21). Define o "estilo brasileiro" dessa "tradição estilística autônoma" pressuposta em cada recorte como o "modo" pelo qual os gêneros literários tradicionais se transformam quando são aplicados a matérias heterogêneas, submetendo-as a uma deformação "expressionista". Especifica os principais temas dessas transformações -o índio, o negro, a cana-de-açúcar, a seca, o sertão, a Amazônia, a Bahia, o arranha-céu. Relaciona a forma literária à língua e aos procedimentos retórico-poéticos, estilísticos.
Como o Brasil é o único país americano a falar português, supõe que tal especificidade torna necessário delimitar uma "civilização brasileira" em contraste com outras civilizações americanas, caracterizando-se uma "cultura brasileira" no âmbito das culturas de expressão portuguesa. O critério, porém, não deve ser apenas o da língua, uma vez que as letras, produzidas por aqui desde o século 16 como "autodefinição" e "diferença", resultam da adaptação de padrões anteriores: "Do século 16 até hoje, a literatura se configura no Brasil como processo de autodefinição: em nível coletivo, como descrição da paisagem humana e geográfica 'diferente'; e, em nível individual, com a efusão lírica que acompanha a verificação introspectiva do Homo brasilicus" (pág. 19).
Christian Jouhaud lembrou recentemente que as abordagens da literatura feitas pela estética da recepção, pela sociologia e psicologia da leitura de McKenzie, pelo "new historicism" norte-americano e outras correntes historiográficas contemporâneas têm em comum o fato de não oporem reservas à historicização da literatura como categoria, valor e produção. A literatura é uma forma cultural de mediação entre produtores e receptores em momentos e situações particulares e não se poderia negligenciar nenhuma das modalidades de sua valorização, ou seja, os processos de produção, perenização e transformação do cânone literário ("Annales", 49, 1994).
Naturalmente, portanto, é discutível a generalização do conceito de "autonomia" e "brasileiro" para todas as letras. Lembre-se, por exemplo, que a unidade ou a identidade de "Brasil" e "brasileiro", implícitas na noção de "autonomia", só aparecem depois da Independência, como produto particular e interessado da unificação ideológica do nacionalismo romântico.
Quando o livro de Luciana saiu, em 1972, a oposição "como/por quê" enquadrava-se nas polêmicas literárias dos vários marxismos e estruturalismos. Vinte e cinco anos depois, sua pertinência teórica e política aparece deslocada ou dissolvida nas abordagens contemporâneas da literatura de que fala Jouaud. Elas vêm propondo a insuficiência ou a não-pertinência da oposição de "história sociológica" e "história estilística". Alegam que as mesmas convenções culturais articulam práticas não-literárias e práticas literárias, ou, ainda, que a forma literária pressupõe, tanto em sua produção quanto em sua apropriação, sistemas de representação que são práticas simbólicas tão reais ou sociais quanto a economia neoliberal que hoje as neutraliza no troca-troca da internacionalização do capital.

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