São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997
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A catástrofe urbana

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS

O urbanista francês Paul Virilio celebrizou-se internacionalmente sobretudo por suas análises sobre a relação entre desenvolvimento tecnológico, conquista militar e controle social.
Em livros como "Velocidade e Política" e "Guerra e Cinema", analisou como tecnologia e imaginário se imbricaram no projeto da modernidade, alterando em definitivo a nossa percepção e compreensão do mundo, bem como as nossas relações sociais e políticas.
O conteúdo polêmico e original de suas obras o colocou entre os mais discutidos pensadores franceses da atualidade.
A cidade e os modos de organização urbana, no entanto, permanecem para Virilio como temas centrais -e é sobre o estado atual e futuro das cidades que ele fala na entrevista a seguir, concedida em sua sala na Escola Superior de Arquitetura, em Paris, onde dá aulas.
Além de sua atividade de professor e ensaísta, Virilio é membro fundador do Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Paz e de Estudos Estratégicos, na Maison des Sciences de l'Homme, e diretor de programas no Colégio Internacional de Filosofia.
Escreveu inúmeros ensaios, vários deles lançados no Brasil, como "A Arte do Motor" e "A Máquina de Visão". Seus livros mais recentes são "Un Paysage d'Evénements" (Uma Paisagem de Acontecimentos, Ed. Galilée), uma coletânea de ensaios que trata principalmente da mídia e seus efeitos políticos, e "Cybermonde: la Politique du Pire" (Cibermundo: a Política do Pior, Ed. Textuel), um ataque à sociedade da informação, tal como ela tem se configurado.
Nascido em 1932, descendente de italianos, Virilio conta na entrevista que foram as ruínas das cidades bombardeadas durante a Segunda Guerra que o levaram, desde a juventude, a relacionar cidade e técnica. Afirma que a grande questão ecológica atual é a cidade e não a fauna ou a flora, pois as metrópoles, hoje, são "fenômenos de mutação, catástrofes que se preparam". E diagnostica que, ao contrário dos Estados, são as cidades que estão se "terceiro-mundializando", devido à sua densidade populacional, ao desemprego e à sua incapacidade de garantir a paz social e a democracia.
Folha - Muitas cidades, no próximo século, atingirão 20 milhões de habitantes: São Paulo, México, Calcutá... Qual pode ser o futuro da vida nestas cidades?
Paul Virilio - Não são mais cidades, mas fenômenos de mutação, catástrofes que se preparam. O século 21 terá que reinventar a relação do homem com a Terra. A grande questão ecológica na verdade é a cidade. Não é a poluição do ar, da fauna, da flora, porém a construção da cidade dos homens, a democracia.
A primeira lei do urbanismo é a persistência do sítio. A segunda diz respeito à extensão da cidade. Quanto mais ela se estende e se torna densa, mais a unidade de população, a família, se reduz.
Antigamente, as cidades eram pequenas e as famílias grandes, 50 a 100 pessoas. À medida que a cidade se desenvolveu, a família passou a ser extensa, com cerca de 20 pessoas. No século 19, já é a família burguesa. Depois, é a família nuclear.
Hoje, nas megalópoles, é a família monoparental, que abandona os filhos, como em São Paulo. Chegamos à desintegração da unidade familiar, e eu não estou falando da família no sentido moral e, sim, enquanto unidade de reprodução. A grande metrópole minou a base da espécie humana, e nós agora vemos bandos de crianças que sobrevivem roubando os adultos. A cidade deixou de ser um lugar de socialização para se tornar um lugar de dessocialização.
Folha - Os ricos de São Paulo estão se fechando cada vez mais em bairros inteiramente privados e protegidos. É uma tendência geral?
Virilio - É. Nos EUA, inclusive, a direita americana quer mesmo o fim dos Estados Unidos e a formação de 12 Estados-cidade... Isso tudo porque as cidades atuais já não garantem a segurança. Uma cidade precisa dar segurança, que é o primeiro bem do cidadão. Nessas cidades imensas, como Los Angeles, Chicago, São Paulo, a paz civil não existe mais e a democracia também não. Não é cidade, é selva.
Folha - Li num de seus livros que as pessoas das cidades se associam por "procuração televisiva" com as pessoas de uma outra cidade e, então, desencadeiam as revoltas urbanas.
Virilio - Quando Soweto (bairro em Johannesburgo, na África do Sul) se revoltou há uns dez anos, houve revoltas em Brighton (Inglaterra) e em Marselha (França), que eu expliquei a partir dos slogans. Um deles dizia: "Aqui é como Soweto". Vendo as imagens, os ingleses e os franceses, cujas condições de vida eram completamente diferentes, imitavam os outros para se autovalorizar. A intifada teve uma grande influência nas revoltas da periferia de Paris. A televisão induz a tomar as cenas de violência como um modelo.
Folha - O que se pode fazer para que, no próximo século, a vida nas cidades melhore?
Virilio - É preciso que a política controle a técnica. Nós estamos às vésperas de uma grande revolução, que vai agravar os efeitos da revolução industrial: é a revolução informacional, que significará o desemprego em massa, o fim do trabalho, da força do homem...
Se o poder político não for capaz de controlar o desenvolvimento técnico dos autômatos, dos sistemas de produção, do mercado, iremos em direção a uma sociedade que terá duas velocidades: formada por uma elite que viverá em "bunkers" e os miseráveis que vão atacá-la. O problema hoje é controlar o desenvolvimento técnico. Nós entramos num período de desemprego em massa, que é estrutural e não conjetural.
Folha - Existe a cidade mediterrânea, em que tudo se mistura, as classes sociais e as funções -política, administrativa, artística. Existe a cidade anglo-saxã -Nova York, Londres-, onde reina a divisão de classes e o "downtown". Paris sempre foi uma cidade mediterrânea. Mas os centros estão se empobrecendo sociologicamente, porque as classes menos favorecidas são obrigadas a ir para a periferia. Qual é o futuro de Paris?
Virilio - O futuro é a metropolização. Nós assistimos no mundo inteiro a uma contração -exatamente, aliás, como a contração do parto- em direção às cidades. Há uns dez anos existiam na França 12 cidades de equilíbrio que permitiam resistir a Paris, porque as pessoas tanto podiam morar quanto trabalhar nelas.
Agora, estamos sofrendo o processo de metropolização que era próprio do Terceiro Mundo -Índia, México... As pessoas, para aí viverem, se precipitavam em direção à capital, ao porto. Isso atualmente está acontecendo também na Europa.
Paris vai se tornando uma enorme nebulosa, e a verdadeira questão é a do emprego. O problema que se coloca para o urbanista é o de saber onde ele deve construir alojamentos, quando já não existe trabalho permanente e o proletariado se dessedentariza.
A Europa era a região do mundo mais sedentarizada. Com a informatização, estamos diante de uma precarização do trabalho. Contratos de duração determinada, seis meses, três, tempo parcial. E agora surgiu na Inglaterra o contrato de zero hora. A empresa oferece um celular ao empregado, que deve atender quando for chamado. Por um só dia, por uma hora, o que é equivalente a ser um escravo.
Para o urbanista isso é dramático. Onde construir alojamentos quando as pessoas circulam permanentemente? Nós estamos às voltas com uma nomadização das populações.
Há agora na Europa 12 cidades que superam os Estados e, portanto, antes de falar do aspecto estético e da qualidade de vida é preciso falar da hiperdensificação. Pense em Hong Kong ou Cingapura! A densidade de população nesses lugares é monstruosa.
Nós assistimos a um declínio do Estado nacional, a uma desertificação das cidades menores em favor das metrópoles, que vão se tornando verdadeiras galáxias. Isso, aliás, tanto vale para os países desenvolvidos quanto subdesenvolvidos.
Há uma terceiro-mundialização das cidades e não dos Estados. Los Angeles e Nova York são atualmente cidades do Terceiro Mundo. Em Calcutá, a gente vive em cima do lixo. O problema portanto não se coloca em termos de estética e sim de população, e esta se desloca dos Estados-nação para as cidades, cuja tendência é a se tornarem Estados-cidade.
Folha - Como intervir nisso?
Virilio - Primeiramente perguntando o que favoreceu a hiperconcentração no século 19. Foi o trem. Em segundo lugar, o que favoreceu a oposição centro/periferia no século 20. Foi o carro. Finalmente, o que está subvertendo hoje o povoamento urbano: a hiperprodutividade, os autômatos etc. Não há como organizar a cidade sem uma compreensão da técnica: a do transporte no século 19, que se caracteriza pela oposição entre a cidade e o campo; a da transmissão no século 20, que se caracteriza pela oposição entre o centro da cidade e a periferia.
No século 21, teremos a oposição entre os sedentários e os nômades. Os sedentários são os que estão em casa em qualquer lugar, no trem, na rua, com o laptop, o celular... Os nômades são os que não estão em casa em lugar nenhum. É o indivíduo que vive no carro à procura de um emprego, vai de um ponto a outro colhendo o que pode, sem apartamento, sem poder se casar etc.
Mitterrand relançou a idéia de que a cidade se faz em torno da memória, da cultura e, portanto, da restauração; acertou em quase tudo, a pirâmide do Louvre, o Instituto do Mundo Árabe; errou na Ópera da Bastilha, que é uma catástrofe, e no quarteirão da Défense, que não vive
Folha - A construção de Brasília é o resultado de uma decisão geopolítica. Mas por que construir uma cidade no centro vazio do país, quando já se estava fazendo a conquista do Oeste brasileiro? Os americanos conservaram Washington, apesar da conquista do Oeste, e o Canadá mantém Otawa como capital, quando a potência econômica do país está do outro lado. É possível fazer uma cidade verdadeira por decreto?
Virilio - Claro que não. Uma cidade se constrói por sedimentação. A maioria das cidades novas morreram por causa da sua novidade. Brasília é uma exposição de arquitetura. Acredito que houve, no início do século 20, com as exposições internacionais, o desejo de fazer exposições de arquitetura. Com isso, abriu-se a porta para a construção das cidades novas.
Folha - Uma das consequências da construção de Brasília foi um certo abandono do Rio de Janeiro.
Virilio - O que é uma pena, porque o Rio é extraordinário.
Folha - O que significa ser um urbanista no século 20?
Virilio - (Ele vai até um dos armários da sua sala de aula na Escola Superior de Arquitetura e apanha uma pedra). Esta pedra veio de Hiroshima. Fiz uma campanha para que não se tombassem somente os monumentos como a Torre Eiffel, mas também Auschwitz e Hiroshima, os lugares catastróficos, que fazem parte da história da humanidade, da memória do mundo. Auschwitz foi declarado lugar histórico, e a Unesco tombou Hiroshima, de onde eu recebi esta pedra...
Folha - O senhor é um urbanista por esta ação política, porém não somente...
Virilio - Sou um urbanista porque trabalho com a organização do espaço. Não sou um construtor de cidades, ensinei e escrevi sobre a organização do território e da cidade, que é a forma política maior da história. Como sou um filho da Segunda Guerra, vi cidades inteiras em ruínas. Fui marcado, na infância, por este fato. Vi Nantes (França) ser destruída por um bombardeio maciço e, desde então, a questão da cidade e da técnica ficaram associadas para mim.
Folha - Existem lugares e paisagens mais propícios a uma urbanização inteligente?
Virilio - Acredito que o problema seja a circulação das populações. Claro que as cidades se construíram inicialmente perto de reservas de água, dos rios ou do mar. Mas existem também as cidades da montanha. O essencial é a cidade estar situada num lugar onde o fluxo de gente é importante, porque ela é um ponto de cruzamento de pessoas. A cidade moderna está em crise, tanto nos países desenvolvidos quanto nos subdesenvolvidos. O sítio conta à medida que for um cruzamento e tanto pode ser um porto, um desfiladeiro ou uma confluência de rios.
Folha - O senhor diz que o problema da cidade não se coloca em termos de estética, mas como sustentar isso quando se trata de Paris ou Nova York? Em "Dias Tranquilos em Clichy", Henry Miller escreveu: "Broadway é a velocidade, a vertigem, o maravilhamento, e nenhum lugar onde a gente possa se sentar. Montmartre é indolente, preguiçosa, indiferente, meio pobre e sórdida, mais sedutora do que vistosa, ela não cintila à maneira da Broadway, porém reluz como a brasa sobre a cinza". A vida em Nova York e Paris parece implicar uma relação diversa do homem com o tempo, com o espaço e até mesmo com a luz.
Virilio - A cidade é uma caixa de velocidade, o rosto escondido da riqueza. A velocidade é, com os transportes coletivos e a iluminação noturna, um dos elementos principais da cidade. Foi a iluminação que fez de Paris a cidade-luz. Ela viabilizou a noite... A cidade sempre foi um lugar onde a gente se droga com a velocidade, com o álcool e agora com a Internet. Vejo da minha janela um casal que, em vez de fazer amor, passa a noite trabalhando na Internet.
Folha - No século passado, Paris se viu às voltas com a reforma de Haussmann, que criou os grandes jardins e as grandes avenidas, demolindo prédios antigos. Apesar do prestígio dos grandes boulevards, a operação não deixou saudade. A Paris que encanta o estrangeiro é precisamente a que Haussmann não conseguiu endireitar, a das margens do Sena, do bairro Marais... Quais as principais transformações urbanísticas e arquiteturais pelas quais Paris passou no século 19?
Virilio - Haussmann foi obrigado a construir num período de crise da paz civil. Reestruturou os boulevards para evitar as revoltas e não só para facilitar o transporte. A paz civil é o primeiro dever de uma cidade. Sem a paz, a cidade de nada serve. O trabalho de Haussmann foi de estrategista, de controle das barricadas, de gestão da estabilidade urbana. A palavra "urbanista" vem do domínio militar. O urbanista era aquele que trabalhava com as muralhas. Na verdade, foi a circulação da tropa que determinou a dos carros.
Folha -E o século 20 em Paris?
Virilio - O grande problema do século é o trânsito. Não mais o da tropa, mas o dos carros. O principal trabalho dos urbanistas em Paris, nos anos 60, foi o de facilitar o trânsito por meio da construção das cidades satélites.
Folha - Que não deram muito certo...
Virilio - Foram verdadeiros fracassos, porque surgiram na época em que o emprego era em tempo integral e o contrato de trabalho por tempo indeterminado. Com a crise do trabalho e do petróleo, as cidades-satélites se transformaram em verdadeiros guetos, são as chamadas zonas do não-direito.
Folha - O senhor falou dos fracassos. E as obras bem-sucedidas?
Virilio - De Pompidou até Mitterrand houve um empenho para reestruturar Paris em torno da cultura. Pompidou fez o Centro Georges Pompidou, chamado Beaubourg. Mitterrand relançou a idéia de que a cidade se faz em torno da memória, da cultura e portanto da restauração. Acertou em quase tudo, salvo a Ópera da Bastilha, que é uma catástrofe, e o quarteirão da Défense, que não vive, embora o arco da Défense seja bonito.
Folha - Seria possível mencionar os acertos arquitetônicos?
Virilio - A pirâmide do Louvre, o Instituto do Mundo Árabe...
Folha - Quais são as realizações arquitetônicas e urbanísticas importantes do século?
Virilio - Nenhuma... Se considerar a Europa, sou obrigado a falar de reconstrução, e esta não foi propriamente brilhante...
Folha -Não há nada que seja digno de nota?
Virilio - A reconstrução de Caen (França) foi relativamente bem-sucedida. Obedeceu a primeira lei do urbanismo, que é a conservação do sítio. Até Le Corbusier quis que a cidade fosse reconstruída noutro lugar. Graças a Deus, não foi ouvido, e Caen ficou no mesmo lugar, com o castelo ao norte, o porto... Houve uma forma de modéstia em relação ao sítio e em relação à arquitetura, ao contrário de Le Havre, onde se fez grandes avenidas, grandes portas para o acesso etc., e a cidade não deu certo.
Folha - E nos EUA também não há nada interessante?
Virilio - Há uma cidade de que eu gosto, San Francisco, porque é um porto e também por causa das montanhas, que favorecem o urbanismo, pois permitem dispor os habitantes na terceira dimensão. A pior coisa para um urbanista é quando ele só pode obter a terceira dimensão por meio do arranha-céu. Isso ocorre sempre que o terreno é plano. Numa cidade como San Francisco foi possível realizar um urbanismo aerificado, graças ao sítio, sem recorrer ao arranha-céu. Manhattan é magnífica, só que é inviável do ponto de vista da sociedade. O arranha-céu é um lugar onde não se comunica, é um gueto vertical, existe em função do elevador e não do homem.
Folha -Gostaria que comparasse Nova York a Paris.
Virilio - Nova York é a grande cidade americana, é uma catástrofe em câmara lenta, segundo Le Corbusier. Mas ela é uma cidade européia, que a gente ama. Paris é o rio, é uma biblioteca que o Sena atravessa, como dizia Walter Benjamin. Para mim ela é um porto fluvial e o lugar por onde passou toda a história da França.
Folha - Nova York também tem a água, o rio Hudson. O senhor viveria lá?
Virilio - Não. A verticalidade me impediria. O elevador é, na vertical, o equivalente do carro, que destruiu a cidade. Existem hoje, no Japão, cidades de 2.000, 4.000 metros de altitude. Isso é Babel, é querer se emancipar do solo, da terra e da água.

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