São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997
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O nervo exposto

RUBEM ALVES

O aborto, quaisquer que sejam as circunstâncias e justificativas que o cercam, é sempre um ato de violência. Em relação à mulher, violência física e psicológica que, inevitavelmente, se inscreve como uma ferida sobre seu corpo e sua alma. Em relação à vida nascente, violência que põe fim a um processo vital que estava se desenrolando.
O bom seria que a vida nos preservasse de violências. Mas, infelizmente, sabemos que há algumas que não podem ser evitadas. A amputação de uma perna, a mastectomia, os inumeráveis atos cirúrgicos semelhantes são todos violentos; provocam aleijões e sofrimento. Mas a sociedade e a ética os justificam, pois se trata de uma violência que tem por fim preservar um bem maior, a vida. Seria possível justificar eticamente essa violência que se chama aborto?
Alguns dizem que não, o aborto não pode jamais ser justificado. E o fazem em nome de uma ética de princípios. Princípios são imperativos absolutos para a ação. Por exemplo, se eu acredito que há um imperativo que me comanda dizer sempre a verdade, mentir será sempre eticamente errado, não importando as consequências.
Imagine agora que uma pessoa bate à sua porta, em desespero, pedindo que você a esconda, porque um criminoso deseja matá-la. Você a acolhe. Minutos depois, batem de novo: um homem, com uma arma na mão. Ele pergunta: "Fulano está aqui?". Pela ética dos princípios, você seria obrigado a dizer a verdade: "Sim, está". Você preservaria sua integridade ética, mas aquele que se escondera em sua casa perderia a vida.
Mas há outra ética que diz que acima dos princípios está a bondade -o correto seria mentir, porque por meio da mentira uma vida seria protegida.
Se houvesse princípios absolutos, válidos para todas as situações, a vida seria muito simples: bastaria que tivéssemos uma lista dos atos eticamente aprovados e estaríamos liberados da terrível necessidade de tomar decisões.
De um ponto de vista psicológico, a ética de princípios nos liberta da responsabilidade, pois a decisão já foi feita por uma outra instância, seja a razão, a igreja ou Deus. O reverso da medalha é: quem controla os princípios controla o comportamento das pessoas.
Se o aborto for subordinado a uma ética de princípios, ele será proibido sempre, quaisquer que sejam as circunstâncias. Mas a consequência ética disso é que o indivíduo seria roubado de algo essencial à sua humanidade: a liberdade de decidir. Metaforicamente, sua responsabilidade seria abortada. O que está em jogo é se é ético retirar do indivíduo sua responsabilidade ética.
De toda forma, qualquer que seja a decisão, será sempre uma decisão de dor. Não se trata de tornar o aborto eticamente justificável e legítimo. Isso não é possível, em virtude da complexidade das relações numa situação em que ele aparece como possibilidade.
Trata-se de reconhecer que existe um lugar nas pessoas no qual elas têm o direito e o dever de decidir segundo a sua consciência. Sou de tradição protestante. Ao protestantismo sempre causou horror a substituição da consciência pela polícia -não importando que ela use fardas religiosas.
A Igreja Católica, em nome do princípio da preservação da vida, declara que o aborto, quaisquer que sejam as circunstâncias, é moralmente proibido, mesmo em situações em que a vida da mãe (não importa que seja mãe de oito filhos) esteja em perigo.
Por mais que eu me esforce, não consigo compreender. Um princípio, para ser válido, tem de sê-lo para todas as situações. Ora, é bem sabido que a igreja tem convivido com situações em que a vida das pessoas é tirada de forma violenta sem que isso lhe cause dores de consciência. Eu poderia citar a Inquisição, em que milhares de pessoas foram mortas da forma mais cruel sem que o princípio da preservação da vida jamais tivesse sido invocado pelos teólogos em defesa dos condenados.
Recordo também a posição da igreja em face da pena de morte. Sob Franco, talvez o ditador mais devoto ao catolicismo do século 20, homem de missa e de comunhão diárias, vigorava na Espanha a horrenda forma de execução chamada "garrote vil". Mas não tenho conhecimento de que a igreja, em nome do princípio da preservação da vida, tenha se oposto a tal prática. Não me consta que os sacramentos tenham jamais sido negados ao ditador.
Sabe-se que a violência criminosa e de guerra, que mata e aleija milhões de inocentes, se deve ao lucrativo negócio de fabricar e vender armas. Mas nunca soube que a igreja, em nome do princípio da preservação da vida, tivesse lutado politicamente para pôr fim a esse negócio ou excomungado fabricantes e vendedores de armas.
Esses fatos me fazem duvidar de que a igreja se oponha ao aborto em nome do princípio da preservação da vida. Se esse princípio determinasse universalmente a sua conduta, ela teria sido forçada a pronunciar o seu "anátema" sobre todas essas atividades -o que mereceria meu mais entusiasmado apoio.
O que me provoca a curiosidade é notar que a sensibilidade moral da igreja entra em ação de forma preferencial quando o sexo está em jogo, como no aborto. Como se o sexo fosse o seu nervo exposto -e lhe fosse insuportável qualquer "permissividade" na área. Estaria em jogo, então, não o princípio da preservação da vida, mas o da preservação da moral sexual da igreja.
Esse é um problema fascinante: imaginar uma instituição que tenha se desenvolvido em torno de um nervo sexual exposto, de dor insuportável. Quem sabe antropólogos, historiadores e psicanalistas venham a se interessar pelo assunto. As fontes para a pesquisa são praticamente inesgotáveis.

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