São Paulo, segunda-feira, 29 de setembro de 1997
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Eppur si muove

JOSÉ SERRA

Alguém disse que a era do governo grande acabou? No começo deste século o gasto governamental nos países hoje industrializados equivalia a menos de 10% da renda nacional. No ano passado, nos mesmos países, a fatia do governo no produto era mais ou menos 50%.
Década após década, a mudança da participação do governo na economia moveu-se numa só direção: para cima.
Durante a guerra subiu; durante a paz subiu. Entre 1920 e meados dos anos 30, anos de comércio e de contatos econômicos internacionais fortemente decrescentes, aquela participação também subiu.
Entre 1960 e 1980, enquanto o comércio e as finanças globais se expandiram, ela continuou subindo. Entre 1980 e 1990, quando a brisa da globalização tornou-se um vento forte, ela subiu de novo. Entre 1990 e 1996, quando o vento tornou-se um vendaval, a participação do governo na economia subiu algo mais.
O leitor talvez fique surpreso com a citação acima, da revista "The Economist". Apesar de Reagan, Thatcher, do colapso do comunismo, da difusão do (mal) chamado neoliberalismo e da ampla aceitação da tese de que o mercado venceu o Estado, este continua aumentando de tamanho nas economias líderes do mundo.
Tal aumento é observado também na América Latina mesmo nos anos recentes, quando não computamos as empresas estatais, hoje em rápida extinção e não incluídas nos cálculos para os países desenvolvidos.
Galileu Galilei, ao ser obrigado a engolir a tese de que a Terra era o centro do universo, enquanto o Sol girava à sua volta, não deixou de ironizar: "eppur si muove" (no entanto se move). Com o Estado também é assim: apesar de tudo ele cresce.
Surpresas à parte, o fenômeno apontado desmente a tese, hoje no limite da popularidade, de que a chamada globalização está extinguindo o significado econômico do Estado, subjugando-o à internacionalização dos mercados. Crença que tem servido mais como desculpa de governantes sem ousadia e competência para justificarem políticas econômicas tortas, políticas sociais ineficientes e desigualdades inaceitáveis.
O Brasil situa-se no grupo de países onde, segundo a revista inglesa, a fatia do governo nos gastos é menor. Mas, certamente, no nosso caso, tamanho não é documento de nada. Mais do que pensar em aumentá-lo temos, essencialmente, de melhorá-lo. Nessa matéria fico com um preceito de Raul Prebisch: na América Latina precisamos de um Estado mais enxuto porém mais musculoso. Nem obeso nem raquítico. Limitado e forte.
Infelizmente, em nosso país, o Estado foi devastado, principalmente nas duas últimas décadas, pelo corporativismo selvagem, pelo clientelismo, quando não pela corrupção e pela incompetência, categoria esta essencial na vida pública brasileira.
Ironicamente, a nova Constituição bloqueia correção de rumos. Por isso, desde a revisão constitucional de 1993/94 vem-se tentando fazer reformas para removê-los. Não que tais reformas bastem para que o Estado navegue até o porto da felicidade geral. Mas certamente constituem uma condição necessária.
Condição que a maioria governamental do Congresso Nacional, infelizmente, teima em não reconhecer. Fazendo isso, dá razão ao Barão de Itararé: "de onde menos se espera é que não sai nada mesmo".

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