São Paulo, sexta-feira, 4 de dezembro de 1998
Texto Anterior | Índice

Contos abrem portas para o universo de Ted Hughes

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Depois de publicações esparsas em antologias, revistas e jornais, o poeta inglês Ted Hughes (1930-98), chega ao Brasil por meio não de sua poesia, mas de seus contos. Dentre os poetas que estrearam após a Segunda Guerra na Inglaterra, ele era um dos mais significativos e havia se tornado o mais famoso, se bem que por razões cujo vínculo com sua arte são, no mínimo, tênues: o desenlace infeliz de seu casamento com a poeta norte-americana Sylvia Plath; e o fato de ter se tornado, em dezembro de 84, Poeta Laureado. Hughes e Plath (nascida em 32) casaram-se em 56 e tudo indica que, durante a maior parte do tempo, tratou-se de um casamento tão normal quanto era e é possível no caso de dois escritores.
Mas Sylvia sofria de depressões crônicas e já havia tentado se suicidar antes. Em 62 a relação terminou, e em 63 a norte-americana se matou antes que seu talento pudesse amadurecer.
A poeta, muito mais que sua obra, transformou-se em mito e em mártir do feminismo americano que, com sua raízes cravadas nas tradições romanescas, não resistiu à tentação de transformar acontecimentos sempre complexos numa narrativa coerente e simples, cheia de heróis (ou melhor, heroínas), vilões e desfechos trágicos.
Se as relações entre os sexos já vinham sendo recontadas à maneira de uma história de capa e espada, como deixar de lançar mão do caso Hughes/Plath para dele fazer um enredo no qual um macho predatório, oriundo da "pérfida Álbion", destrói uma frágil, mas talentosa, flor feminina proveniente da inocência do Novo Mundo?
Sensatamente, o inglês calou-se e, até o começo deste ano, quando publicou seu último livro de poemas, "Birthday Letters" ("Cartas de Aniversário", que está sendo traduzido por Paulo Henriques Britto) falando justamente de sua primeira mulher e do convívio de ambos, quase não tocou mais no assunto.
Ainda assim, a maldição o perseguiu, embora mais nos EUA do que em sua ilha natal, pois lá sua celebridade chegou ao ápice quando o escolheram para suceder a Sir John Betjeman como Poeta Laureado do Reino Unido.
Essa estranha instituição britânica (que rende algumas poucas dezenas de libras anuais) existe há séculos e, além de requerer do titular que escreva odes e elegias para ocasiões como o nascimento de um príncipe, o casamento ou morte de um rei, a vitória em alguma guerra, converte-o concomitantemente em "poeta nacional" e num motivo de chacota (nem sempre despida de inveja) entre seus colegas.
Convém admitir que Hughes não apenas foi provavelmente o melhor poeta a desempenhar, neste século, tais funções, como o fez discretamente e, a julgar pela recepção elogiosa de sua última coletânea, pôs em dúvida a opinião segundo a qual aceitar a láurea equivaleria a nunca mais escrever algo que pudesse ser considerado decente. Nem o mais rigoroso dos críticos britânicos, Donald Davie, poupou elogios a seu poema sobre o batizado do príncipe Harry (filho de Charles e Diana), o primeiro que escreveu na condição de laureado.
Se bem que principalmente poeta, ele foi autor prolífico em vários gêneros: escreveu e traduziu para o teatro, publicou livros para crianças, dedicou-se à crítica, esteve entre os fundadores da ótima revista "Modern Poetry in Translation", e promoveu autores estrangeiros.
Seus comentadores reconhecem, em volumes como "Lupercal" (60), "Wodwo" (67) e "Crow" (70), uma poesia forte que, influenciada por Dylan Thomas e, mais ainda, D.H Lawrence, aborda, por meio de bichos como o corvo/gralha (crow) ou a raposa, tanto o âmago animal do ser humano quanto o campo arcaico que subjaz à moderna vida urbana, evocando igualmente um passado nacional violento como o da Primeira Guerra.
A ficção foi, para ele, uma atividade de exceção, e "Dificuldades de um Noivo", com nove narrativas escritas entre 54 e 93, reúne todos os contos que concluiu e quis preservar.
O que este volume mostra, assim, não é a obra de um prosador profissional, mas antes o material que ele optou por desenvolver numa forma que não era, por eleição, a sua.
Como ocorre na ficção de tantos dentre nossos próprios poetas, mesmo os maiores, poderíamos antever aqui uma coleção amadorística, cujo valor seria antes o de iluminar seus poemas. Não é esse, porém, o caso.
Sem dúvida, o que menos se encontra em seus contos é o cerne mesmo da narrativa, ou seja, a ação, pois, quando se apresenta, ela o faz antes para conectar, de alguma forma, blocos descritivos.
Desde Tchecov, contudo, o conto se alterou e se ampliou o suficiente para comportar confortavelmente histórias nas quais nada ou muito pouco acontece. E são precisamente assim esses contos.
Por mais que o autor transite de uma variedade a outra, uma história a respeito da infância, outra sobre fantasmas, algo mais realista aqui, algo mais psicológico ali, o que dá coerência ao conjunto são as descrições do mundo natural (Hughes se criou no interior da Inglaterra e seu irmão mais velho tornou-se guarda florestal) e, curiosamente, de um mundo urbano que, nas suas descrições, por assim dizer, se "naturaliza".
Só que a natureza de que trata não se expõe objetivamente ao leitor, mas filtrada pela consciência vaga de um observador que está longe da cidade (ou, pelo menos, das outras pessoas) e cuja subjetividade, buscando se entender nesse ambiente, perde aos poucos todo distanciamento e se confunde com ele.
Em outras palavras, o que esses contos têm de melhor são exatamente aquelas características responsáveis pelo clima peculiar e pela visão pessoal de seus principais poemas. Pouco separa, portanto, sua prosa de sua poesia, e por meio de qualquer uma delas se pode entrar em sua obra.

Texto Anterior: O ESPIÃO
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.