São Paulo, segunda-feira, 28 de dezembro de 1998
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Passagem de ano

BORIS FAUSTO

A passagem do ano -um artifício cronológico da invenção humana- não deveria nos levar só aos presentes e cartões, que acabaram se transformando em obrigações estereotipadas. Este é um bom momento para os balanços, ainda que precários, do passado e para as interrogações, ainda mais precárias, acerca do futuro. É um bom momento também para pensar em questões relevantes.
Como não tenho afinidades com a transcendência, a questão que me vem à mente é bem terrena e, como tudo que é terreno, não tem uma resposta milagrosa. Descartadas as utopias revolucionárias, que produziram tantos males, estamos diante de um desafio, em todo o mundo: o de encontrar caminhos para eliminar a pobreza absoluta, ampliar o acesso aos bens materiais e culturais, reduzir as desigualdades sociais, incorporar à cidadania desempregados, ou jovens que nunca tiveram a perspectiva de um emprego. Diante desse desafio, é forçoso constatar que a retórica superou em muito, até aqui, a eficácia das ações.
Se o problema é global, ganha contornos específicos em cada país. Por exemplo, embora a taxa de desemprego seja maior na Espanha do que no Brasil, o caso brasileiro é muito mais grave, tendo-se em conta a rede de proteção existente em um caso e a quase desproteção no outro. Não custa recordar também que o Brasil viveu, em anos ainda recentes, um longo período de inflação. As consequências sociais desse fato tornaram-se transparentes quando o descontrole inflacionário revelou seus efeitos perversos na distribuição de uma renda já de si tradicionalmente iníqua.
Daí a necessidade de ter cuidado com soluções simplistas que, buscando reduzir o impacto da crise, poderiam trazer de volta velhos problemas. Por outras palavras, em um país nas condições do nosso, há boas razões para ter prudência na engenharia de equilíbrio entre estabilidade e crescimento econômico. Isso não significa ignorar que sem crescimento -e crescimento expressivo- estaremos condenados ao agravamento do quadro social.
Crescer é não só um imperativo de justiça como também um requisito básico para a ampliação da cidadania. Lembro, a propósito, uma frase insólita de John Kenneth Galbraith: "Nada estabelece limites tão rígidos à liberdade de um cidadão quanto a absoluta falta de dinheiro (Mais! de 20/12)".
Comparada com os sonhos de uma ordem igualitária, imposta a ferro e fogo, essa afirmação parece modesta e de um pragmatismo excessivo. Na verdade, ela envolve todo um programa de reforma social, cujos caminhos nem sempre são claros, pressupondo, em qualquer situação, a ação consequente dos homens.
Voltando ao momento da passagem do ano, ocorre-me lembrar um verso de Drummond, belo e verdadeiro, embora os versos não necessitem ser verdadeiros para ser belos: O último dia do ano não é o último dia do tempo. Tentemos pois fugir o quanto possível aos atropelos, buscando tomar maior consciência do mundo, a partir de nós mesmos.

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