São Paulo, terça-feira, 01 de julho de 2008

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Rigor formal de Bresson "contamina" Garrel

Diretores franceses são foco de ciclo que vai de hoje a domingo na Sala Cinemateca, exibindo longas como "Mouchette"

Divulgação
As atrizes Johanna Ter Steege e Brigitte Sy em cena de "Já Não Ouço a Guitarra"

CÁSSIO STARLING CARLOS
CRÍTICO DA FOLHA

Quem busca distração vai atrás de ação. Quem quer aprender ou compreender precisa ir em busca de outras fontes. Na contramão da pura ação, dois criadores reunidos nesta semana em curtos ciclos na Cinemateca compartilham, além da língua, idéias de cinema que se comunicam na recusa dos excessos.
O mais explícito em sua grandeza é o nome de Robert Bresson (1901-1999). Já Philippe Garrel, 60, apesar de uma obra que se estende por mais de quatro décadas, é obscenamente pouco conhecido por aqui.
Com exceção de "Amantes Constantes", penúltimo filme do diretor e único exibido comercialmente no Brasil, sua filmografia de 28 títulos permanece rara mesmo em circuitos alternativos.
Os dois ciclos simultâneos na Cinemateca trazem, de hoje a domingo, quatro filmes de Bresson e dois de Garrel.
O epíteto "jansenista" costuma ser aplicado com regularidade à obra de Bresson sem que o público nem sempre alcance sua singularidade. Parte do vocabulário teológico, o termo designa uma interpretação religiosa e moral que enxerga no homem uma inclinação intrínseca para a queda, sua vocação para o pecado.
O gosto por fábulas morais e uma indisfarçável presença de símbolos religiosos predominam na obra de Bresson. Mas, para além das recorrências temáticas, os filmes do diretor se sobressaem graças ao rigor formal que põe ainda mais em evidência tais significados.
O cinema de Bresson é marcado por uma ascese, uma rarefação do drama como estamos habituados a assistir no cinema comercial. Sem abolir a trama e seus desdobramentos, o cineasta enfatiza a cada vez um tipo de força -gestos, olhares, palavras e, sobretudo, imobilidades e silêncios- como forma de revelação. No processo de expressão destes mínimos, o diretor esvazia sua estética de tudo aquilo que possa ser considerado supérfluo, decorativo ou mera banalidade psicológica, incluindo a recusa de filmar com atores profissionais.
Na rigorosa coreografia dos gestos e do olhar angelical do assaltante de "Pickpocket - O Batedor de Carteiras" ou nos diálogos literais de tribunal em "O Processo de Joana d'Arc", Bresson propõe outra forma de representação.
Deste modo, ele constituiu uma estética purificada que se aplica indistintamente a histórias de bandidos ou de santos, tornando-os protagonistas de tremores de revelação da alma em sua vida invisível, aquilo que o diretor francês indicou na fórmula "o cinema é o movimento interior".
Tal lição de realismo desprovido de efeitos repercute fortemente na cinematografia francesa tanto em obras de artistas já desaparecidos, como Maurice Pialat e Jean Eustache, como na de ainda ativos, como Philippe Garrel. Garrel começou a filmar em 1964 e, no embalo das rupturas estético-político-afetivas-comportamentais de 1968, aprofundou as radicalidades de um cinema de filiação experimental.
A partir dos anos 90, seus filmes passaram a refletir os impasses sentimentais e existenciais da geração que proclamou o amor livre e a política libertária como afirmação de ideais complementares.
A esta fase pertencem os dois belos títulos exibidos no ciclo da Cinemateca, "Já Não Ouço a Guitarra" e "O Nascimento do Amor", nos quais Garrel filma a desorientação sentimental com uma câmera intimista que recusa a retórica para alcançar o essencial.


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