São Paulo, terça-feira, 01 de agosto de 2006

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Crítica/cinema

Mostra exibe inquieto cinema sem fronteiras do diretor Ruy Guerra

Divulgação
Norma Bengell e Jece Valadão em cena de "Os Cafajestes"


JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Se Nelson Pereira dos Santos é chamado (a contragosto) de "pai do cinema novo", Ruy Guerra seria uma espécie de irmão mais velho da turma.
Cidadão português nascido em Moçambique em 1931, Guerra radicou-se no Brasil em 1958 trazendo uma bagagem que faltava aos jovens cinemanovistas: estudara cinema no Instituto de Altos Estudos Cinematográficos (IDHEC) de Paris, trabalhara como assistente de Jean Delannoy e Patrice Dally e como ator em "S.O.S. Noronha" (1956), de Georges Rouquier.
Essa vocação de cidadão do mundo, sobretudo do Terceiro Mundo, seria a marca de toda a obra do cineasta, conforme se pode atestar pela mostra "Ruy Guerra - Filmar e Viver", que o Centro Cultural Banco do Brasil exibe a partir de hoje.
Com permanente inquietação estética e espírito de intervenção política, Guerra filmou no Brasil, em Cuba, Portugal, Moçambique, França, México, Espanha e Panamá.
A mostra traz desde seu primeiro curta, "Quand le Soleil Dort" (1954), realizado como trabalho de conclusão do curso no IDHEC, até seu mais recente longa, "O Veneno da Madrugada" (2005), inspirado no romance do amigo Gabriel García-Márquez.
Todos os grandes clássicos do diretor -como "Os Cafajestes" (1962) e "Os Fuzis" (1963)- estão presentes na retrospectiva, ao lado de raridades como a série "Me Alquilo para Soñar" (1992), realizada para a TV espanhola e co-roteirizada por García Márquez, ou o documentário "Mueda - Memória e Massacre" (1980), que registra a reconstituição teatral da chacina perpetrada pelas forças coloniais portuguesas na cidade moçambicana de Mueda em 1960.
Numa filmografia tão heterogênea, sujeita às vezes às condições de produção mais adversas, não faltam os fracassos integrais, como a megaprodução "Kuarup" (1989), baseada no romance de Antônio Callado, ou parciais, como o musical "Ópera do Malandro" (1985), parceria com Chico Buarque.
Mas mesmo esses eventuais deslizes são interessantes, por mostrarem um cineasta ao mesmo tempo maduro e sem medo de errar. Há sempre em sua obra uma inquietação criativa que tem faltado a seus acomodados companheiros de geração. Alguns títulos, em particular, merecem uma reavaliação. É o caso de "A Queda" (1978), recebido quase com indiferença à época.
Primeiro longa brasileiro rodado inteiramente em 16mm e depois ampliado para 35mm, "A Queda" retoma alguns personagens de "Os Fuzis" -soldados de um destacamento encarregado de proteger um armazém numa região nordestina assolada pela seca- uma década e meia depois, transplantando a ação para o universo da construção civil no Rio.
Vale a pena ver os dois filmes em seqüência para verificar esse deslocamento do rural ao urbano, com o correspondente aprofundamento do olhar crítico sobre as contradições sociais. Outro longa que merece ser revisto é "Estorvo" (1998), corajosa tentativa de buscar na própria textura fílmica a paranóia e a crise de identidade presentes no romance de Chico Buarque. Na contramão do cinema plastificado e televisivo reinante em nossos tempos, o filme não recebeu a atenção que merecia. Tem agora uma segunda chance.
Em muitos de seus filmes, Ruy Guerra é também roteirista e montador. Trabalhou como ator em produções alheias (incluindo "Aguirre", de Werner Herzog). Conhece todos os meandros do cinema. Mas faz questão de esquecer tudo e reaprender a cada vez que entra num set de filmagem. Daí a vitalidade ímpar de sua obra.


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