São Paulo, quinta-feira, 02 de fevereiro de 2006

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TEATRO/CRÍTICA

Em tempos de cenários grandiosos, montagem em cartaz no CCSP prima pelo essencial e pelo trabalho de ator

"O Porco" propõe teatro com mínimo de recursos

Silvia Machado/Divulgação
O ator Henrique Schafer em cena de "O Porco", montagem dirigida por Antonio Januzelli


SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Nos atuais tempos de carência de incentivos à produção teatral, a saída é investir no marketing de cenários espalhafatosos e atores famosos ou reduzir o teatro ao seu essencial, recolhendo-se em salas minúsculas e improvisadas, para reinventar o novo. Nessa tendência que felizmente se multiplica e salva a lavoura, "O Porco", monólogo dirigido por Antonio Januzelli e representado por Henrique Schafer, é a montagem que mais honra esse teatro "underground".
Underground ao pé da letra, aliás, já que se entranha no porão do Centro Cultural São Paulo, o instigante, mas complicado espaço Ademar Guerra por sua falta de isolamento acústico e de platéia confortável. Mas a inteligente estratégia da montagem tira proveito imediato disso.
Afinal, o que se vai ouvir é o depoimento de um porco na véspera do abate: arriscar-se ao espaço escondido, sob o mundo dos homens, já funciona como um ritual para a platéia. No aparente improviso do espaço, no entanto, percebe-se logo um minucioso projeto de luz com excelente operação, e o figurino que faz o rústico se tornar sofisticado.
E isso acompanha admiravelmente o texto. Seu tema faria pensar em um deboche escatológico; no entanto, o porco de Raymond Cousse tem a dignidade dos clowns de Shakespeare. Frente à morte iminente e que ele sabe inevitável, sua sucessão de argumentos, sem nunca apelar para o patético nem para o grosseiro, é inesquecível. Não denuncia a sua condição, mas a reivindica em nome de sua dignidade. Um porco cartesiano, que tirando sua força de sua serenidade vai abrindo significados cada vez mais abrangentes para a sua vida.
Cercado por dois lados pelo público, exposto à curiosidade como em um açougue, o porco faz as honras da pocilga detalhando o significado de cada adereço: o balde, que o criador cisma em pôr no meio do espaço diminuto, impossibilitando os rígidos códigos pessoais de conduta de seu porco; a porta de bronze que se abrirá para a morte, a palha e a ração que se adivinham. Como em Beckett, cada detalhe é fundamental, e o cheiro delicado do excremento equivale à lembrança do falecido pai cachaço.
Reforçado pela tradução, que ao se basear na versão espanhola diminuiu o humor mais solto dos trocadilhos do original francês, o mestre Januzelli, com seu olhar de Lince, conduz seu discípulo Henrique Schafer por uma partitura preciosa, que faz vibrar silêncios e alterna ritmos e tons levando a arte da ironia a seu ponto mais sofisticado.
Falando olho no olho com a platéia, incluindo-a sem constrangê-la, o desgaste físico e emocional de Schafer é enorme, mas a preparação de anos para esse espetáculo faz dele o cartão de visitas de um ator a não se perder de vista.
Não há metáforas; porém a crueza arquetípica da situação do porco cercado para a morte acaba remetendo ao que o público quiser: o Holocausto, a condição humana e, por que não, a situação do ator que, no seu espaço mínimo, recria um sentido para a vida. Não é preciso muito para haver o melhor teatro: basta um ator e a leitura inteligente de um texto.


O Porco
    
Direção: Antonio Januzelli
Com: Henrique Schafer
Quando: qua. e qui., às 21h; até 2/3
Onde: Centro Cultural São Paulo (r. Vergueiro, 1.000, Liberdade, tel. 3277-3611, r. 221)
Quanto: R$ 12



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