São Paulo, sábado, 02 de dezembro de 2006

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Crítica/teatro/"Todos os Homens Notáveis"

Peça do ator e dramaturgo Marcelo Fonseca cumpre menos do que promete

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Após quatro anos de processo e 12 versões, "Todos os Homens Notáveis" surge com a vocação de ser o "Cidadão Kane" de Marcelo Marcus Fonseca. De fato, o ator-diretor-dramaturgo propõe com fé no taco um texto de longo fôlego que toca incômodas feridas da tão jovem e já tão desacreditada democracia brasileira. Conta, para isso, com a cumplicidade de sua companhia, Teatro do Incêndio, e com medalhões do teatro paulista, como Davi de Brito na luz e Lola Tolentino nos figurinos.
Bem amparada e com bons propósitos, a montagem no entanto não consagra a companhia, e causa um impacto no fim das contas bem menor do que se poderia esperar.
Ao contrário de Orson Welles em "Cidadão Kane", aliás, o diretor não pretende aqui revolucionar a linguagem narrativa. Deixa, pelo contrário, muito claras as suas referências: as cenas curtas com diálogos entrecortados cheios de frases de impacto remetem imediatamente ao "Beijo no Asfalto" de Nelson Rodrigues, com seus jornalistas amorais, magnatas patéticos em suas perversões e ingênuos úteis que vão se corrompendo diante das circunstâncias.
Da mesma forma, vêm diretamente do universo de Antunes Filho muitas das soluções cênicas, como os coros alegóricos e o cenário minimalista que vai sendo moldado pelas necessidades de cada cena, além da elegante trilha executada ao vivo e, é claro, a luz de Brito.
Mas a montagem se desautoriza quando, ao pretender desmascarar os mecanismos escusos do poder, reafirma lugares comuns. Conrado Reis, dono de emissora de televisão, torna-se governador graças ao apoio de seu amigo Olavo Silvestre, dono de um grande jornal que até então condenava a vulgaridade da programação de Reis. Eles acabam se destruindo ao expor a sujeira acumulada por baixo do tapete.
A atuação apaixonada de Fonseca, no papel de Reis, e de Gustavo Engracia, que faz Olavo com uma densidade contida, contribuem para evitar que a montagem descambe em uma chanchada cínica e maniqueísta. Questões delicadas são tratadas nas entrelinhas, como o secreto homossexualismo, que humaniza ambos, e a ironia esperta dos diálogos faz contrapeso ao que o espetáculo tem de sentencioso.

Redundâncias
O espetáculo se ressente sobretudo por cenas redundantes e ilustrativas, como a da festa da posse, na qual uma advogada corrupta é desafiada a expor em meio à orgia suas futuras estratégias de defesa para a corrupção inevitável.
No começo do processo, em 2002, talvez a cena ainda tivesse uma força de delação. Tantas CPIs inúteis depois, a denúncia acaba apenas ecoando a vulgaridade do real, sem trazer luz nova ao problema.
Comum em espetáculos dirigidos pelos dramaturgos, a peça pede um enxugamento rigoroso, que não tivesse dó de suprimir a lírica shakespeareana que alguns solilóquios alcançam, com prejuízo do ritmo geral. O público que aplaude vigorosamente ao final da peça parece querer assim endossar a indignação de seus autores, contra a política podre na raiz, vendida ainda pelo todo poderoso marketing disfarçado de notícia.
Mas o fato de que, tantas denúncias depois, o panorama não pareça mudar mostra que uma investigação mais profunda das causas ainda seja necessária. A denúncia de "Todos os Homens Notáveis" não é vazia, mas chove no molhado, e, apesar da sua elegância e empenho, acaba ficando bem aquém do seu potencial.


TODOS OS HOMENS NOTÁVEIS   
Quando: sex. e sáb., às 21h; dom. às 19h. Até 17/12
Onde: João Caetano (r. Borges Lagoa, 650, tel. 5573-3774)
Quanto: R$ 10


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