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São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2003

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CINEMA

"Dois Destinos", produção de 1962 do cineasta italiano, narra o reencontro de dois irmãos separados na infância

Zurlini realiza busca pela verdadeira afeição

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

"Dois Destinos" (1962), a triste crônica familiar de Valério Zurlini (1926-82), é um filme de afecções, de estados afetivos absolutos, uma obra dedicada, portanto, ao primeiro plano, aos rostos dos atores.
Quando fica sabendo da morte do irmão mais novo, logo de início, Enrico (Marcello Mastroianni) põe-se a andar pela rua, mas seu movimento é interrompido por um plano de seu rosto lívido e estático. Esse corte abole nossa noção de espaço para nos conduzir a outra dimensão, como se o tempo entrasse em cena para abater o personagem. Como se, por um "efeito retardado" que parece comum a destinatários de notícias trágicas, o tempo (de uma vida toda) tombasse sobre Enrico.
O espectador de "Dois Destinos" não mais se verá livre, doravante, da sensação de sofrer, também ele, essa (o)pressão do tempo. Narrando, por meio de Enrico, a história da relação dos dois irmãos em flashback a partir daí, o diretor nos obriga a sentir uma angústia que, de resto, deveria ser a mais comum: a certeza de que a morte nos espera no fim.
Jacques Perrin, o ator-fetiche de Zurlini, faz o caçula. Seu personagem, Lorenzo, tem, não por acaso, o mesmo nome do jovem que interpretara no filme anterior do cineasta, o clássico "A Moça e a Valise" (1960). Os Lorenzos de Perrin não compartilham a mesma classe social, mas a mesma fragilidade e pureza d'alma. Os dois são como o Aliosha (o caçula Karamázov) dostoievskiano, ingênuos e conciliadores, afetuosos e pios.
Se Lorenzo é Aliosha, Enrico é uma espécie de Ivan Karamázov, o intelectual niilista do tipo que já perdeu todas as ilusões na vida, mas não (de todo) o coração. Diante de um quadro que lhe lembra as paisagens de sua infância, Enrico nos conta como testemunhou a inadequação do caçula para a vida.
A paisagem toscana que Enrico vislumbra no quadro lhe evoca a casa em que o irmão, apartado da família desde cedo, foi criado numa "redoma de vidro". Separados na infância, os dois se reencontram na juventude, estranhos um ao outro, mas unidos, em busca de identidade, por um mesmo sentimento, a afeição à avó.
A Zurlini não interessa senão o que, dos laços familiares, resta de verdadeira afeição. Sua "cronaca familiare" nos conduz de um estado afetivo absoluto a outro, e à medida que nela adentramos é todo o "mundo de afecções" do cinema italiano do pós-guerra que nos toma novamente: "Dois Destinos" é um daqueles clássicos italianos de cuja genuína tristeza já não estamos à altura, tão embotada anda a nossa sensibilidade de (tele)espectador contemporâneo.


Dois Destinos
Cronaca Familiare
    
Produção: França/Itália, 1962
Direção: Valério Zurlini
Com: Marcello Mastroianni, Jacques Perrin, Sylvie



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