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"Vanguarda majoritária não existe", diz poeta
Pignatari afirma que mais importante que ser novo é ter poesia de alto repertório; para ele, número 1 foi Sousândrade
Correspondência com os irmãos Campos, organizada em livro, mostrará nascimento da poesia concreta e "xingatórios"
DOS ENVIADOS A CURITIBA
Leia abaixo a continuação da
entrevista com Décio Pignatari.
FOLHA - Os irmãos Campos tinham
uma relação diferente do senhor
com a idéia de reconhecimento da
poesia concreta?
PIGNATARI - Bom, o Augusto se
queixa em relação ao reconhecimento. Eu não quero saber
disso, não me importo. Não
existe vanguarda majoritária. O
signo novo não pode ser majoritário. O novo põe em questão
o que foi feito antes.
Imagine o Picasso chegar em
1958 e fazer 50 anos do quadro
"Les Demoiselles d'Avignon".
Não basta ser simplesmente de
vanguarda. O importante é você ter uma poesia de alto repertório. Só isso.
FOLHA - E quais são seus critérios
para avaliar os repertórios?
PIGNATARI - Eu costumo perguntar aos meus alunos ou em
conferências: sabem quantos
brasileiros lêem "Os Lusíadas"
por ano? Dezessete. Eu fiz as
contas, incluindo os departamentos de literatura. Para
mim, que tenho Camões como
número 1, não adianta 17 lerem
"Os Lusíadas" ao ano. Porque,
para mim, o cotejo é sempre internacional. Se você me perguntar qual é o maior poeta do
Brasil, eu vou responder: "O
que você está querendo dizer?".
É um problema de teoria da informação. Eu não gosto de falar
em primeira, segunda ou terceira categoria.
E sim em primeiro nível, segundo nível e terceiro nível.
Você tem grandes, ótimos criadores, mas muito poucos de
primeiro nível, como Dante e
Mallarmé.
No segundo nível está a grande maioria dos grandes escritores, especialmente prosadores,
como Dostoiévski, Faulkner,
Tolstói, que era um plagiário.
Eles são todos excelentes criadores, que fizeram grandes
obras de segundo nível.
FOLHA - E, no Brasil, quem temos
no primeiro nível?
PIGNATARI - Nós temos os grandes, mas eles justamente não
estão nos departamentos de letras. O número 1 do século passado se chama Joaquim de Sousândrade. E quem é que vai ler?
Quem é que entende? A penetração da informação nova é
muito lenta, demora até entrar
no "mainstream". Ele está sendo publicado agora. Ninguém
entende o que aquele homem
está falando...
FOLHA - Mas esse problema é historicamente típico do Brasil ou do
mundo em geral?
PIGNATARI - Não, isso existe em
geral. Vi gente extraordinária
que foi reconhecida muito depois. Nos séculos 17 e 18, ninguém lia Shakespeare. Na Inglaterra, Shakespeare não existia. Acho que mal era representado. Ele foi ressuscitado no
Romantismo.
FOLHA- Mas, no Brasil, há mais autores de primeiro e segundo níveis?
PIGNATARI - Você tem os grandes criadores do século 20, como não? É uma pena que Álvares de Azevedo tenha morrido
tão cedo. Esse era um byroniano, tinha talento demais. Assim
como o Castro Alves, que eu
adorava na adolescência. E o
século 20 produziu os grandes
poetas do Brasil. O Drummond
não deve nada a Octavio Paz.
Selecionando bem. João Cabral
é poeta realmente de primeiro
nível, no Brasil, de segundo nível mundial. Ele não chega a ser
nenhum Mallarmé, não chega a
um Cummings, a um Pound,
não chega a um Elliot, que para
mim é grande mesmo, até
maior que Pound. Eu não engulo os cantos inteiros do Pound.
FOLHA - E na prosa? Guimarães Rosa está entre os primeiros?
PIGNATARI - Aqui, Guimarães
Rosa em primeiro, Dyonélio
Machado em segundo, e depois
vêm todos os nordestinos. Ou
seja, vêm aí José Lins do Rego,
os bons. Você tem alguns, mas
tem de selecionar as obras deles, mas você tem Graciliano
Ramos, José Lins, o Guimarães
Rosa... . Quando li "Sagarana",
eu falei: "Mas que coisa absurda, esse sujeito misturou Rui
Barbosa com Euclides da Cunha. "Sagarana" para mim é detestável, mas ele surpreendeu
com "Grande Sertão: Veredas".
Aí ele sabia quem era Joyce, ele
sabia quem é Camões, ele realmente sabe quem é Euclides.
FOLHA - Esse tipo de avaliação não
parece ter eco no meio acadêmico
brasileiro...
PIGNATARI - No Brasil, você
sempre caminha para uma coisa que é muito pobre. Faz-se literatura comparada, mas se foge como o diabo da cruz dos juízos de valor. Aí, vem um Harold
Bloom [críticos literário norte-americano] e espanta todo
mundo porque ele fala mesmo
"é bom" e "eu gosto". E é preciso, senão como é que você vai
orientar os mais novos? Nós
nos perguntávamos, Augusto,
Haroldo e eu, nas nossas reuniões: o que queria dizer um
grande poeta brasileiro? O que
queria dizer um grande autor
brasileiro? Se começarmos a
cotejar internacionalmente,
onde ele ficaria? O Antonio
Candido, que foi meu orientador na academia, acabou transformando os setores de letras
no mesmo que eram os catedráticos. Quer dizer, um nacionalismo que não faz muito sentido e onde você até procura
evitar estudar, por exemplo, as
influências estrangeiras sofridas por um escritor brasileiro.
FOLHA - O sr. poderia dar um
exemplo?
PIGNATARI - Por exemplo, a influência do Joyce no Rosa. Eu
defendi e dei cursos durante
décadas sobre "Os Ratos", do
Dyonélio Machado. Só esse livro do Dyonélio, gaúcho, já vale
toda aquela festa nordestina,
que, de resto, fez trabalhos interessantes, não importa se é
best-seller. Se é sucesso, é sucesso, por que não? Não sou
contra fazer sucesso.
Escritores como Erico Verissimo e Jorge Amado eram best-sellers, foram os primeiros
best-sellers brasileiros. Mas
não atingem, para mim, nenhum deles, o valor de "Os Ratos", que pegou no ar, naturalmente, o romance em 24 horas
do James Joyce, não é? Ele fez
ali algo extraordinário.
FOLHA - Como será o livro de cartas
que a Unicamp está preparando?
PIGNATARI - A [pesquisadora]
Maria Eugênia Boaventura,
que fez o "O Salão e a Selva", a
biografia de Oswald de Andrade, está cuidando disso. O que
pode ter interesse para pesquisadores no futuro é a correspondência minha com os Campos. Eu na Europa, eles em São
Paulo, entre 1954 e 1956. Eram
cartas assim de dez, 12, 15 páginas, e eu datilografava todas, eu
não escrevia à mão. Tenho muitas delas, pois eu tirava cópia, à
máquina mesmo, com carbono.
E era uma briga danada, discussões de tudo o que você pode
imaginar, até xingatórios. E imbatível mesmo é o Haroldo. Só
o Haroldo sozinho, meu Deus,
só a correspondência do Haroldo deve ter 2.000 cartas.
Nessa correspondência se vê
tudo, o nascimento da poesia
concreta praticamente. Aquilo
que antecedeu também, porque eu tinha sonhado mesmo
em ir embora do Brasil. Era natural, para alguém que admirava poetas, escritores e artistas
de fora, querer conhecer que
mundo é esse. Gente que eu admirava. Que primeiro mundo
era esse? Era a Europa.
FOLHA - E como estas suas viagens
à Europa influenciaram a poesia
concreta que estava por vir?
PIGNATARI - Eu fiquei um ano
em Paris, seis meses em Munique, me interessava muito por
desenho industrial. Eu já estava ligado ao grupo de artistas
concretos que tinha já uma visão do design. Fui justamente
para a Alemanha para conhecer
a recém-inaugurada Hochschule für Gestaltung, a escola
superior da forma que tinha sido inaugurada pelo [designer,
arquiteto e artista plástico suíço] Max Bill [1908-1994]. E aí
tive minha primeira conversa
com [poeta boliviano de origem
suíça Eugen] Gomringer [1925-], quando nos demos conta de
que o nosso caminho era o mesmo. Foi uma maravilha essa
descoberta. Então, primeiro
Gomringer. Segundo, pela primeira vez eu ouvi falar em semiótica e Charles Sanders Peirce. E, terceiro, a primeira vez
em que eu ouvi falar em cibernética, por meio de um livrinho
do Norbert Wiener que ficaria
famoso: "Cibernética e Sociedade - O Uso Humano de Seres
Humanos". Essas duas informações, mais a ligação a Gomringer, foram fundamentais.
FOLHA - Em 2004, o senhor lançou
"Céu de Lona", primeira parte da trilogia que investiga as relações entre
intelectuais e suas mulheres. Como
andam a segunda e terceira partes?
PIGNATARI - Eu havia começado
a segunda parte em Ferrara, em
maio do ano passado, e agora
voltei lá para concluir. Chama-se "Viagem Magnética", que
trata da Nísia Floresta, a grande, a primeira feminista brasileira. Ela e o Auguste Comte [filósofo francês fundador do Positivismo], que, na verdade,
aparece bem "en passant". Ela
mesma nunca foi positivista. A
história é bem outra. Uma professora de Minas, a Constância
Lima Duarte, me cedeu muito
material. Mas ela fez todo o trabalho oficial, politicamente
correto. Eu vou fazer uma obra
de ficção, onde vão acontecer
coisas espantosas. Não é a Nísia
histórica que aparece. É uma
peça eroticamente muito forte.
É uma peça de idéias, não de
uma pessoa. E a terceira vai ser
sobre Kierkgaard e Regine Olsen, e vai se chamar "O Salto",
que é uma das idéias fundamentais do Kierkgaard. Você
chega no momento da angústia
absolutamente necessária. Você não vai sair dela sem dar "o
salto", que para ele é Deus.
FOLHA - Como gostaria que as peças fossem encenadas e por quem?
PIGNATARI - Com a maior liberdade. E pelo Bob Wilson, porque foi ele que marcou a minha
mudança para o teatro. Estava
em São Paulo, quando vi sua
montagem de "Quando Despertamos de entre os Mortos",
de Ibsen. Era o que eu queria, as
falas e os gestos são deslocados.
O texto vinha de três fontes diferentes. Pô, eu fiquei apaixonado pelo Bob Wilson.
FOLHA - No Brasil, não acha que
tem alguém que seja capaz?
PIGNATARI - O Antunes. Embora ele hoje seja uma lástima.
Eles só são bons na primeira
peça, depois, um desastre.
Folha - Nem o Zé Celso?
PIGNATARI - O Zé Celso não. O
Zé Celso fez "O Rei da Vela" e
mais alguma coisa. O Zé Celso é
abominável. Abominável nos
últimos 20 anos. Eu fazia crônica na Folha quando fiz crítica a
ele. Ele ficou uma vara. Mandava sujeitos me telefonar, me
xingar de tudo quanto era nome. É uma baixaria baseada na
ignorância. A gente do teatro
brasileiro é muito ignorante.
FOLHA - Das lutas nas décadas de
50, 60, cuja riqueza o senhor exalta,
o que restou?
PIGNATARI - Ficou o que você
desfruta hoje. Ficou um outro
Brasil. Já é um outro Brasil,
ainda em nível de C para B. Mas
é um outro Brasil. Você não
tem idéia do que era. Não tem
nem idéia do que era namorar e
casar naquele tempo. Não tem
idéia da estupidez, dos preconceitos em relação a tabus sexuais, tabus da virgindade. O
número de estudantes universitários, naquele tempo, eu calculo, devia ser cem mil. Hoje
caminhamos para 4 milhões.
FOLHA- E o que restou das vanguardas?
PIGNATARI - Não, não há mais.
Vai haver muitas vanguardas.
Não há mais a idéia de uma única vanguarda. São muitos focos
que podem ser vanguarda. No
Brasil, infelizmente, ficamos
para trás numa delas e para a
frente noutras. Por exemplo, o
Brasil ficou para trás na arquitetura, cultivando o concreto
que faz o edifício pesar 500 vezes mais.
FOLHA- E em que vanguarda o Brasil está presente?
PIGNATARI - Logo vão acabar
com ela também, mas a única
vanguarda que houve nesses
últimos tempos, por incrível
que pareça, e que me espantou,
foi a moda. A moda me espantou. Todos os desfiles de moda.
Meu deus do céu, eles fazem
aquelas roupas incríveis e todo
mundo se pergunta: mas ninguém vai vestir isso? Justamente essa moda é uma linguagem de vanguarda. Eu não conheço bem, mas eu vejo os desfiles, as fotos, as coisas incríveis
que acontecem na moda, pombas. A moda como roupa experimental. Acho espantoso como linguagem a moda.
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