São Paulo, terça-feira, 04 de dezembro de 2007

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Crítica/teatro/"Renato Russo"

Espetáculo promove "religião urbana"

Biografia teatral idolatra Renato Russo com dramaturgia incipiente e ambígua, que lembra sessões de culto na TV

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
O ator Bruce Gomlevsky encarna o vocalista da Legião Urbana no espetáculo "Renato Russo', no Centro Cultural Banco do Brasil

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

É preciso partir do óbvio: um espetáculo que se propõe ser uma homenagem a Renato Russo, feita por um fã confesso, a partir de reprodução de performances do artista e de dados tirados de seu biógrafo mais autorizado (Arthur Dapieve, autor de "Renato Russo, o Trovador Solitário"), não deveria ser resenhada por um crítico de teatro, e sim por um representante de fã clube, um "cover" ou pelo menos um crítico de música popular. Teriam muito mais condição do que eu para checar se a imitação é bem feita, se os dados estão totalmente corretos, se há omissão imperdoável.
No entanto, dado que o espetáculo superlota teatros e disputa prêmios e espaço de divulgação com peças de teatro, cabe-me aqui a tarefa ingrata de analisar a homenagem de Bruce Gomlevsky como tal. O desafio é algo grotesco: não sendo fã, e muito menos detrator, de Renato Russo, procurei me colocar no lugar do famoso habitante de Marte que não vem à Terra nas últimas décadas e ver "Renato Russo" como um monólogo musical sobre um cantor que fez muito sucesso no Brasil, tentando entender as razões desse sucesso, a partir do que me era apresentado.
Não recomendo a experiência a ninguém -se é que há algum espírito de porco capaz de fazer isso por razões não profissionais. A peça começa como um show convencional, claustrofobicamente espremido na diminuta sala do Centro Cultural Banco do Brasil. A luz de Wagner Pinto impressiona muito no início, até deixar claro a diferença de função entre show e teatro: fala aos sentidos, não à razão; exalta o ídolo sem promover o distanciamento.
Um primeiro recurso metalinguístico, interessante mas pouco aproveitado, sugere que há um problema técnico (qual?) que interrompe o show, obrigando o artista a dar dados pessoais sobre si mesmo, incluindo a platéia real entre os personagens da ficção. Como o truque não daria conta de toda a trajetória do artista, logo há uma interrupção propriamente teatral: como em um pesadelo de Russo, uma cadeira de rodas é levada ao palco.
É o primeiro gancho para o flashback, uma referência à doença que o trancou por meses em casa, na adolescência.
Alinhavo de dados, a dramaturgia incipiente de Daniela Pereira de Carvalho demasiadas vezes tem de contar com o eficiente videografismo do Apavoramento, um coletivo de publicitários e videojóqueis, para fazer algum sentido.
A direção de Mauro Mendonça Filho tem alguns achados emocionantes, como o recurso final quando a sombra do personagem permanece no palco após a saída do ator, sinalizando a fama póstuma. A razão de sua morte, no entanto, permanece obscura: um envelope cai nas suas mãos e sangra (o sangue, aliás, percorre todo o espetáculo, em um tom que beira o kitsch).
É aqui que a crítica começa a ficar patética: todos, menos este marciano, sabem que Russo morreu de Aids, coisa que a família ainda prefere ocultar, apesar de permitir a "revelação" de sua homossexualidade e seus problemas com drogas.
O espetáculo conta até com a adesão de especialistas na platéia para que eles "sugiram" nomes definitivos das músicas. Desde o início concebido enquanto exaltação, o espetáculo celebra o mito até mesmo quando ele expressa o desejo de não ser considerado mártir.
Quando Gomlevsky desce a platéia para distribuir flores e apertar mãos de alguns que choram acreditando estar diante de uma ressurreição, enquanto outros batem palmas em cadência, a sensação de estar diante de um culto religioso televisionado é sufocante.


RENATO RUSSO
Quando:
qui. a sáb., às 19h30; dom., às 18h; até 16/12
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil (r. Álvares Penteado, 112, tel. 3113-3651)
Quanto: R$ 15
Avaliação: ruim


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