São Paulo, quinta-feira, 06 de março de 2008

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Crítica/teatro/"Arrufos"

Sem insistir em fórmulas testadas, peça consagra estilo do Grupo XIX

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

O Grupo XIX, assim como o Espanca! (de Belo Horizonte), conheceu a dor e a delícia de ser consagrado em seu primeiro trabalho, e, à maneira de uma mãe adolescente, teve que dar conta da responsabilidade.
"Hysteria", o primogênito, rodou o mundo; "Hygiene" cumpriu seu papel de não-tão-bom segundo filho; e agora, o recém-nascido "Arrufos" cumpre sua sina específica, a de consagrar um estilo, correspondendo à expectativa da platéia que fidelizou, mas sem se esvaziar na repetição de fórmulas bem-sucedidas.
É claro que não são descartáveis as conquistas difíceis, como a delicada técnica de interação estabelecida com a platéia (a qual, quase hipnotizada, expõe-se com todo seu amor-próprio preservado); nem tampouco a dicção (anacronicamente moderna) de acento machadiano, que reabilita o y da "lágryma" com o saudosismo de Teixeira de Pascoaes.
A novidade aqui é o espaço.
Com sua vocação restauradora, o Grupo XIX já despertou os ecos de velhas casas pelo mundo, que abrigaram o sanatório feminino de "Hysteria" e, em "Hygiene", tomou para si o resgate de toda uma comunidade esquecida, a Vila Zélia, sede da companhia.
Agora, o tema do conflito amoroso é enquadrado na dimensão íntima da tela de Belmiro de Almeida, de 1887, da qual empresta o título e partes do cenário -as almofadas, lâmpadas e drapeados que acolhem o público.
A questão urbana se recolhe na alcova burguesa: falar de amor equivale a colocar o olho na fechadura.

Gêneros incompatíveis
A eterna incompatibilidade entre os gêneros que o quadro parece proclamar -e que o grupo estaria endossando ao distanciar os homens na platéia de "Hysteria" e ao atribuir a eles uma função castradora na dramaturgia de "Hygiene"- é suavizada agora na obrigação de o público se dispor em pares ao acaso, o que serve de base a várias improvisações.
Ao assumir com voz firme a sua vulnerabilidade, o elenco masculino se nivela às interpretações do feminino, no qual brilha uma amante abandonada oculta em lençóis, remetendo a Magritte, criação da sempre inesquecível Sara Antunes.
Por outro lado, na arqueologia do desejo, os limites do século 19 são expandidos, partindo de uma severa primeira parte ainda árida do patriarcado colonialista para transgredir em seguida em um século 20 que ainda vibra em uma necrofilia lúdica, bem ao gosto de Álvares de Azevedo, que faz Roberto Carlos soar como sucessor natural. Às vezes longo, mas sem nunca deixar de ser surpreendente, Arrufos mantém alta a cotação do Grupo XIX.


ARRUFOS
Quando:
sáb., às 20h; dom., às 19h; até 30/3
Onde: Vila Maria Zélia (r. Cachoeira esq. c/ r. dos Prazeres, Catumbi, tel. 2081-4647)
Quanto: R$ 20
Avaliação: ótimo


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