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Crítica
Adaptação de Pinter desperdiça forças subliminares de texto
"Celebração" é a última peça do inglês Harold Pinter, morto em 2008; montagem sofre com deslizes de interpretação
LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA
Dramaturgos são artífices de ações imaginárias com o poder de rivalizar com a realidade e ultrapassá-la.
O espetáculo "Celebração"
tem como principal trunfo encenar o último texto para teatro
de Harold Pinter (1930-2008),
um dos poetas dramáticos mais
relevantes do século 20. Estreado em Londres em 2000,
sob direção do próprio autor, o
texto foi classificado como uma
comédia satírica.
A peça se passa em um restaurante sofisticado, "o melhor
do mundo", próximo aos teatros mais bem frequentados da
capital inglesa. Seus personagens são figuras habituais
àquele ambiente, gente endinheirada que foi à ópera, ao balé ou ao teatro, mas já não se
lembra bem o que acabou de assistir. O foco de atenção se alterna entre dois grupos sentados em duas mesas semicirculares. De um lado, dois casais
-dois irmãos casados com
duas irmãs. De outro, um banqueiro acompanhado da esposa, sua ex-secretária.
Esses elementos configurariam uma cena perfeitamente
naturalista, com diálogos típicos à situação em que se encontram -um dos dois casais celebra o seu aniversário de casamento e termina contagiando o
da mesa vizinha- e um desenvolvimento formal que rumaria
para uma solução. Mas, se os
dois semicírculos se juntam no
final numa única mesa redonda, como sempre ocorre em
Pinter há algo que paira fora da
cena e tensiona o drama para
além de seus limites.
No caso, como marca desse
último Pinter, desencantado e
amargo, as falas dos personagens parecem descompassadas
das ações vividas. O que eles dizem vem contaminado de uma
brutal vulgaridade, que vai
muito além de sua condição de
novos ricos e transborda o que
caberia à situação. São falas que
lhes escapam das bocas, traindo suas intenções. É como se
além do plano ficcional e dos
referenciais externos, que remetessem a uma realidade que
estivesse sendo satirizada,
ocorresse um enxame de pontos de fuga deslocando os personagens à condição mais abjeta. Sem piedade, o autor os lança na lama das banalidades.
O contraponto ocorre por
meio do garçom, que insiste em
resgatá-los de sua miserável
mediocridade, evocando um
avô que conheceu as mais notórias figuras da alta cultura literária ou protagonizou aventuras românticas no glamour da
velha Hollywood. Em nenhum
dos casos a comunicação se fecha. Na solitária nostalgia do
garçom de um tempo que se
perdeu, a evidência da impossibilidade de qualquer redenção.
A celebração que se dá, é, afinal,
um melancólico rito funerário
da própria cultura ocidental.
Seus participantes estão restritos a deblaterarem suas infelicidades, como colegiais púberes, por meio de canções pornográficas.
Na transposição para o palco,
o encenador Eric Lenate não
soube jogar com as forças subliminares do texto. Os atores oscilam entre a informalidade
forçada e a impostação estudada em desempenhos desequilibrados. O garçom de Pedro
Guilherme se destaca, mas, ao
definir-se na máscara caricata,
desperdiça a corrosão que seria
obtida se suas narrativas deslocadas fossem oferecidas em registro mais natural. Apesar desses deslizes nas interpretações,
o espetáculo se impõe vigoroso
no espaço exíguo em que se instala. A iluminação de Davi de
Brito colabora na materialização de um ambiente ao mesmo
tempo feérico e tétrico, em fino
contraste com os figurinos realistas de Denise Machado.
Em "Celebração", a dramaturgia de Pinter encerra-se como começou: desafiando o real,
ao esvaziá-lo de sentidos, e potencializando sua reapresentação como sombra.
CELEBRAÇÃO
Quando:
qui. e sáb., às 21h; sex., às
21h30; dom., às 20h. Até 13/9
Onde: Teatro Cultura Inglesa (r. Dep.
Lacerda Franco, 333, tel. 3814-0100)
Quanto: R$ 5 a R$ 20
Classificação: não recomendado a menores de 14 anos
Avaliação: regular
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