São Paulo, quinta-feira, 06 de agosto de 2009

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Crítica

Adaptação de Pinter desperdiça forças subliminares de texto

"Celebração" é a última peça do inglês Harold Pinter, morto em 2008; montagem sofre com deslizes de interpretação

LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA

Dramaturgos são artífices de ações imaginárias com o poder de rivalizar com a realidade e ultrapassá-la. O espetáculo "Celebração" tem como principal trunfo encenar o último texto para teatro de Harold Pinter (1930-2008), um dos poetas dramáticos mais relevantes do século 20. Estreado em Londres em 2000, sob direção do próprio autor, o texto foi classificado como uma comédia satírica.
A peça se passa em um restaurante sofisticado, "o melhor do mundo", próximo aos teatros mais bem frequentados da capital inglesa. Seus personagens são figuras habituais àquele ambiente, gente endinheirada que foi à ópera, ao balé ou ao teatro, mas já não se lembra bem o que acabou de assistir. O foco de atenção se alterna entre dois grupos sentados em duas mesas semicirculares. De um lado, dois casais -dois irmãos casados com duas irmãs. De outro, um banqueiro acompanhado da esposa, sua ex-secretária.
Esses elementos configurariam uma cena perfeitamente naturalista, com diálogos típicos à situação em que se encontram -um dos dois casais celebra o seu aniversário de casamento e termina contagiando o da mesa vizinha- e um desenvolvimento formal que rumaria para uma solução. Mas, se os dois semicírculos se juntam no final numa única mesa redonda, como sempre ocorre em Pinter há algo que paira fora da cena e tensiona o drama para além de seus limites.
No caso, como marca desse último Pinter, desencantado e amargo, as falas dos personagens parecem descompassadas das ações vividas. O que eles dizem vem contaminado de uma brutal vulgaridade, que vai muito além de sua condição de novos ricos e transborda o que caberia à situação. São falas que lhes escapam das bocas, traindo suas intenções. É como se além do plano ficcional e dos referenciais externos, que remetessem a uma realidade que estivesse sendo satirizada, ocorresse um enxame de pontos de fuga deslocando os personagens à condição mais abjeta. Sem piedade, o autor os lança na lama das banalidades.
O contraponto ocorre por meio do garçom, que insiste em resgatá-los de sua miserável mediocridade, evocando um avô que conheceu as mais notórias figuras da alta cultura literária ou protagonizou aventuras românticas no glamour da velha Hollywood. Em nenhum dos casos a comunicação se fecha. Na solitária nostalgia do garçom de um tempo que se perdeu, a evidência da impossibilidade de qualquer redenção.
A celebração que se dá, é, afinal, um melancólico rito funerário da própria cultura ocidental.
Seus participantes estão restritos a deblaterarem suas infelicidades, como colegiais púberes, por meio de canções pornográficas.
Na transposição para o palco, o encenador Eric Lenate não soube jogar com as forças subliminares do texto. Os atores oscilam entre a informalidade forçada e a impostação estudada em desempenhos desequilibrados. O garçom de Pedro Guilherme se destaca, mas, ao definir-se na máscara caricata, desperdiça a corrosão que seria obtida se suas narrativas deslocadas fossem oferecidas em registro mais natural. Apesar desses deslizes nas interpretações, o espetáculo se impõe vigoroso no espaço exíguo em que se instala. A iluminação de Davi de Brito colabora na materialização de um ambiente ao mesmo tempo feérico e tétrico, em fino contraste com os figurinos realistas de Denise Machado.
Em "Celebração", a dramaturgia de Pinter encerra-se como começou: desafiando o real, ao esvaziá-lo de sentidos, e potencializando sua reapresentação como sombra.


CELEBRAÇÃO
Quando: qui. e sáb., às 21h; sex., às 21h30; dom., às 20h. Até 13/9
Onde: Teatro Cultura Inglesa (r. Dep. Lacerda Franco, 333, tel. 3814-0100)
Quanto: R$ 5 a R$ 20
Classificação: não recomendado a menores de 14 anos
Avaliação: regular




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