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MÚSICA ERUDITA
Filarmônica da Rádio de Hannover faz concerto vibrante na Sala São Paulo com clarinetista Paul Meyer
Sertões de Mozart, sonho de sabá de Berlioz
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Os deuses baixam nos lugares
mais diferentes. No Teatro
Oficina, claro, onde a jagunçada
transcendental incendeia os sentidos da vida, todo dia. Mas também em plena segunda-feira engravatada na Sala São Paulo, onde
o clarinetista francês Paul Meyer
tocou o "Concerto" K. 622 de Mozart (1756-91), acompanhado pela
Filarmônica da Rádio de Hannover, regida por Eiji Oue.
Foi como se o "Concerto" tivesse sido escrito na semana passada
e trouxesse verdades novas e urgentes para todos. Não que alguém não soubesse: só que a música às vezes alcança essa presença
humana, inexplicável quando se
pensa que é feita de ar (mais chaves, palhetas, cordas, madeiras,
verniz). O Mozart é dos mais conhecidos; mas nunca ninguém
não tocou o retorno do tema do
segundo movimento num pianíssimo mais pianíssimo assim, para
falar por um instante como aquele outro deus que morava na Barra Funda, Mário de Andrade.
Meyer é bom de escalas e arpejos, mas o que mais pega são mesmo as notas doces, aveludadas.
Há clarinetistas que tocam no limite da audição; não é o mesmo
que tocar no limite do inaudível
-aliás, é quase o contrário. Assim se compreende também sua
postura, sempre de olhos fechados, seja tocando, seja esperando
para tocar. No segundo caso, fica
imóvel, a cabeça erguida para cima, o clarinete seguro com as
duas mãos à frente do corpo, como um pequeno tótem.
De bis, tocou sozinho "Send in
the Clowns", de um musical de
Stephen Sondheim (1930). Parecia uma homenagem aos colegas
na platéia, Sérgio Burgani e Nivaldo Orsi, do naipe de clarinetes da
Osesp e do quinteto Sujeito a
Guincho (que tocou uma versão
deslumbrante da mesma canção
no mês passado, num show com
Mônica Salmaso, que deve servir
de base para um disco). Até os zíperes das bolsas e o celofane das
balas ficaram quietos para escutar
Meyer.
No extremo oposto de movimento e vivacidade fica o maestro
japonês Eiji Oue. Pouca gente se
mexe tanto no pódio -e olha que
estamos falando de maestros.
Oue é baixinho, mas domina a cena girando a batuta literalmente
do chão aos céus. Regendo a "Sinfonia Fantástica" de Berlioz
(1803-69), chegou várias vezes a se
apoiar com a mão esquerda na
barra de proteção atrás de si e estocar o espaço, para baixo, com a
direita, cavando o nada em busca
de um acento ou um acorde.
Também baila; e a Filarmônica
de Hannover, se não é uma orquestra dos sonhos, vai com ele
na fantasia. Com direito a encenação, no caso do oboé fora do palco, na "Cena Campestre", entrevisto e entreouvido detrás do coro, com a porta do mezanino
aberta.
Mas o forte da orquestra são os
fortíssimos. O "Dies Irae", no último movimento, foi a resposta à
altura, de dentro da música, para
as alucinações eróticas do "Sonho
de uma Noite de Sabá", onde Berlioz dá corpo à amada como bruxa (e a si mesmo como supliciado).
Não se compara ao cavaquinho
de Letícia Coura, lá no Oficina,
mas chega perto, o que já é quase
o máximo.
Avaliação:
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