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São Paulo, quarta-feira, 08 de outubro de 2003

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MÚSICA ERUDITA

Filarmônica da Rádio de Hannover faz concerto vibrante na Sala São Paulo com clarinetista Paul Meyer

Sertões de Mozart, sonho de sabá de Berlioz

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Os deuses baixam nos lugares mais diferentes. No Teatro Oficina, claro, onde a jagunçada transcendental incendeia os sentidos da vida, todo dia. Mas também em plena segunda-feira engravatada na Sala São Paulo, onde o clarinetista francês Paul Meyer tocou o "Concerto" K. 622 de Mozart (1756-91), acompanhado pela Filarmônica da Rádio de Hannover, regida por Eiji Oue.
Foi como se o "Concerto" tivesse sido escrito na semana passada e trouxesse verdades novas e urgentes para todos. Não que alguém não soubesse: só que a música às vezes alcança essa presença humana, inexplicável quando se pensa que é feita de ar (mais chaves, palhetas, cordas, madeiras, verniz). O Mozart é dos mais conhecidos; mas nunca ninguém não tocou o retorno do tema do segundo movimento num pianíssimo mais pianíssimo assim, para falar por um instante como aquele outro deus que morava na Barra Funda, Mário de Andrade.
Meyer é bom de escalas e arpejos, mas o que mais pega são mesmo as notas doces, aveludadas. Há clarinetistas que tocam no limite da audição; não é o mesmo que tocar no limite do inaudível -aliás, é quase o contrário. Assim se compreende também sua postura, sempre de olhos fechados, seja tocando, seja esperando para tocar. No segundo caso, fica imóvel, a cabeça erguida para cima, o clarinete seguro com as duas mãos à frente do corpo, como um pequeno tótem.
De bis, tocou sozinho "Send in the Clowns", de um musical de Stephen Sondheim (1930). Parecia uma homenagem aos colegas na platéia, Sérgio Burgani e Nivaldo Orsi, do naipe de clarinetes da Osesp e do quinteto Sujeito a Guincho (que tocou uma versão deslumbrante da mesma canção no mês passado, num show com Mônica Salmaso, que deve servir de base para um disco). Até os zíperes das bolsas e o celofane das balas ficaram quietos para escutar Meyer.
No extremo oposto de movimento e vivacidade fica o maestro japonês Eiji Oue. Pouca gente se mexe tanto no pódio -e olha que estamos falando de maestros. Oue é baixinho, mas domina a cena girando a batuta literalmente do chão aos céus. Regendo a "Sinfonia Fantástica" de Berlioz (1803-69), chegou várias vezes a se apoiar com a mão esquerda na barra de proteção atrás de si e estocar o espaço, para baixo, com a direita, cavando o nada em busca de um acento ou um acorde.
Também baila; e a Filarmônica de Hannover, se não é uma orquestra dos sonhos, vai com ele na fantasia. Com direito a encenação, no caso do oboé fora do palco, na "Cena Campestre", entrevisto e entreouvido detrás do coro, com a porta do mezanino aberta.
Mas o forte da orquestra são os fortíssimos. O "Dies Irae", no último movimento, foi a resposta à altura, de dentro da música, para as alucinações eróticas do "Sonho de uma Noite de Sabá", onde Berlioz dá corpo à amada como bruxa (e a si mesmo como supliciado).
Não se compara ao cavaquinho de Letícia Coura, lá no Oficina, mas chega perto, o que já é quase o máximo.


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