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São Paulo, sábado, 08 de novembro de 2003

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"O PROCESSO"

Temas de Kafka são retomados em trabalho labiríntico e cíclico

Divulgação
A bailarina Sônia Soares em "O Processo", do grupo FAR 15, baseado no romance de Franz Kafka


INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA

O tempo urge, ou melhor, o tempo ruge: debaixo das máscaras, dá-se aos poucos um encontro com farrapos e sombras. "O Processo", do grupo FAR 15, que estreou semana passada no Viga Espaço Cênico, novo palco na cidade, dramatiza a consciência aguda dos limites. Nossa angústia é sempre maior do que a repressão.
Inspirado livremente no romance "O Processo", de Franz Kafka (1883-1924) -autor que já lhe serviu de base antes-, o coreógrafo Sandro Borelli cria um trabalho labiríntico e cíclico. Sem nome e sem rosto, o peso da existência se debruça aqui sobre cada um de nós. A mal-definida culpa do homem contemporâneo, sua acelerada desumanização, a impossibilidade diante dessa vida: retornam os grandes temas da tradição kafkiana.
Em cena, ergue-se uma pilha de processos, sobre a qual ficam o Primeiro Acusado e a Culpa. À esquerda, o Inspetor (que há de se tornar mais um Aprisionado, depois). O Acusado carrega a Culpa: um corpo sobre o outro, o peso e a suspensão. São deslocamentos difíceis, marcados pelo dilaceramento interno destes corpos que são o duplo um do outro.
Sucessivamente os cinco intérpretes vão carregar seu reverso -Sônia Soares, que passa de corpo em corpo com um fardo, mesmo se por vezes integrado com doçura. Sua interpretação é difícil e precisa; só em alguns momentos fica visível o esforço para se equilibrar sobre os outros corpos sem tocar o chão, deixando escapar a relação vital entre eles. Grande bailarina, que tecnicamente consegue se sustentar no ar, associando a suspensão ao contrapeso de seu corpo com o dos outros, Soares tem cenas memoráveis no espetáculo.
A cena inaugural se repete com maior ou menor carga durante toda a noite, como uma linha de tensão atravessando todas as partes. O espetáculo se dá, então, seja pela riqueza dos gestos isolados, seja pela mudança inesperada no tempo dos movimentos.
Tanto na relação entre os bailarinos como na construção cênica, Borelli mostra um desenvolvimento seguro de sua trajetória. Círculos, diagonais, linhas e pontos compõem a geometria precisa dos corpos, que se encontram e ganham força no estiramento das oposições. O que está concentrado no fundo do palco durante quase todo o tempo explode no fim, num vaivém infinito dos corpos.
Figurino (ternos marrons, em oposição à malha bege de Soares) e espaço (sótão com madeiras e vigas aparentes) criam nuanças próprias para a ambígua homogeneidade do "processo". De sua parte, a trilha sonora, que é discreta no início, deixando entreouvir os sons dos corpos e o balbuciar das falas, ao final se reduz às trivializadas repetições eletrônicas. Não seria o caso da pesquisa do movimento ecoar também na música?
Tanto mais que "O Processo" só ganha intensidade na simplicidade e repetição dos gestos. São as nuanças, então, que mais contam; assim como é o renovado e arrojado acento do espetáculo que mais conta, para marcar a singularidade dessa companhia no cenário perpetuamente em perigo de esgotamento.


O Processo   
Onde: Viga Espaço Cênico (r. Capote Valente, 1.323, Pinheiros, região oeste, tel. 3801-1843)
Quando: sex. e sáb. às 21h e dom. às 20h; até 7/12
Quanto: R$ 15



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