São Paulo, domingo, 08 de dezembro de 2002

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"O LIVRO DE JÓ"

Teatro da Vertigem emana fé que ergue catedrais

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Existem duas maneiras de ver "O Livro de Jó". A primeira é prestando atenção nos atores; na imensa delicadeza com que pronunciam cada frase do texto, não o destruindo por excesso de ênfase nem amenizando seu impacto.
Da crua fábula de Jó, que de próspero se torna o mais miserável dos homens devido a uma aposta entre Deus e o Diabo, talvez o que na Bíblia haja de mais próximo da tragédia grega, Abreu tirou um texto conciso e altamente poético, sempre elevado, sem nunca se tornar hermético: clássico, como o melhor Racine.
Exige um grande domínio dos atores, que saem consagrados do desafio: do elenco original e atual constam os mais bem preparados atores da nova geração. Tendo ou não chegado à fama, carregam o carisma de terem se doado por inteiro à digna dor de Jó e de sua mulher, dos amigos e narradores.
O mérito de Antônio Araújo não é apenas o de ter situado a ação em um hospital, com as referências imediatas à Aids que isso acarreta, mas o de coordenar a cada apresentação uma dinâmica precisa que envolve a música de Laércio Resende -em grande parte executada à capela por excelentes cantores-, a ambientação cenográfica de Marcos Pedroso e a caracterização de Fábio Namatame, criando imagens de enorme impacto que atingem o âmago do público.
A segunda forma de ver "Jó", assim, é observar o público, que perambula pelos corredores do hospital compungido e perplexo, não raro desmaiando pelo cheiro do éter e a cor do sangue, mas sempre respeitado em sua integridade. A cada estação desse auto medieval, no qual cada figura alegoriza nossa própria experiência da dor do mundo, uma decisão tem de ser tomada: abandonamos Jó para testemunhar, na desativada UTI infantil, a revolta de sua mulher que acaba de perder os filhos; a deixamos com sua irreversível perda de fé para acompanhar, na sala de cirurgia, Jó reencontrar a Deus, como Pascal, no auge do desamparo.
Se "Apocalipse 1,11" implode prisões, "O Livro de Jó" emana uma fé que ergue catedrais, uma fé que dialoga com os medos e convicções de cada um sem se amparar em dogmas autoritários; a fé que tem a força de encarar a sua contestação.


O Livro de Jó
    
De: Luís Alberto de Abreu
Direção: Antônio Araújo
Com: grupo Teatro da Vertigem
Onde: hospital Humberto Primo (al. Rio Claro, 190, Bela Vista, tel. 283-1027)
Quando: sex. e sáb., às 21h; dom., às 20h; até 20/12
Quanto: R$ 25 (sex. e dom.) e R$ 30 (sáb.)
Patrocinador: Brasil Telecom



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