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São Paulo, segunda-feira, 08 de dezembro de 2003

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CINEMA

Obra do diretor japonês, que tem retrospectiva no CCSP, conjuga o perene e o mutável, o cotidiano e o cósmico

Estética de Ozu antecipa modernos europeus

Divulgação
Cena de "Fim de Verão", de Yasujiro Ozu, de 1961, que faz parte de restrospectiva que começa hoje


TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Um pouco por culpa dos próprios japoneses, que a achavam japonesa demais para interessar aos ocidentais, a obra de Yasujiro Ozu (1903-63) foi descoberta ainda mais tardiamente pelo Ocidente do que as de Kurosawa e Mizoguchi. O resultado, porém, não foi diferente: Ozu, tema da retrospectiva que se inicia no Centro Cultural São Paulo, entrou na moda.
Ozu entrou na moda por sua modernidade, o que pareceria um paradoxo para os que não viam em sua obra senão o conservadorismo de um cineasta atento à desagregação dos valores tradicionais (e familiares) japoneses frente à modernização.
O cinema moderno europeu do pós-guerra preparara o público ocidental para a leitura de Ozu, mas também propiciara os equívocos: se o público de então se identificou de pronto com seus filmes, foi porque estes pareciam, à primeira vista, prenunciar a concepção (baziniana) do "cinema da transparência", própria ao (neo) realismo do pós-guerra, um cinema desdramatizado de temas cotidianos filmados em planos longos e fixos, um cinema mais próximo da espontaneidade do documentário.
Foi preciso mais de um estudo para que se descobrisse o quanto aqueles filmes obedeciam a um esquema previamente elaborado, paulatinamente desenvolvido durante a obra, e o quão sistemático e rigoroso era Ozu.
Coube então ao crítico Alain Bergala dar cabo das antigas ilusões: em Ozu, concluiria ele nas páginas dos "Cahiers du Cinéma", "a enunciação precede o enunciado", o dispositivo de filmagem antecede à coisa filmada, rigorosamente.

Pseudônimo americano
Ozu se tornou então uma coqueluche dos próprios diretores do chamado cinema moderno europeu, especialmente os da terceira geração. Mais do que o rigor estético (minimal) de Ozu, rigor que antecipa a política do "menos vale mais" cara aos autores modernos europeus, foi o fato de esse rigor ter sido aplicado a um manancial comum, a influência do cinema clássico americano, que mais aproximou Ozu dos modernos -em nome dessa influência, Ozu chegou mesmo a usar, como argumentista, um pseudônimo nipo-americano, James Maki, cujo pai teria a esperteza dos americanos e a mãe a delicadeza das japonesas.
Ozu chegou, como se sabe, à montagem-cut, usando falsos "raccords" de eixo muito antes dos cineastas modernos, mas, como estes, só chegou a tal descoberta, partindo, em seus primeiros filmes, influenciados pelos americanos, de "raccords" clássicos, ao estilo hollywoodiano.
Ao quebrar o "raccord" clássico de olhar (entrecruzado), Ozu passa a legar ao espectador (clássico) um lugar vazio: como nos lembra Bergala, o olhar-Ozu não é nem um olhar-câmera nem um olhar-ficção, mas um olhar indeciso que deixa o espectador numa posição flutuante e descentrada, imerso no vazio em que miram os próprios atores.
Quando morreu, no exato dia em que completava 60 anos, Ozu deixou sobre o túmulo a epígrafe: "Mu". O nada e o pleno, os dois aspectos da contemplação que derivam dessa palavra estão presentes em sua obra. Ozu já foi comparado a um escriba que anota de cócoras os ínfimos fatos cotidianos no grande livro da eternidade e a um pescador que contempla, à margem do rio da vida, o torvelinho das gerações.
Em sua obra, as dissoluções familiares da moderna sociedade japonesa são percebidas, em suas mínimas variações, sob o signo do tempo. Para ele, já se disse, o perene e o mutável, o cotidiano e o cósmico são um só. Humilde e passivamente, Ozu observa seus personagens, ciente de que a vida é sempre simples e que são os homens que a complicam.



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