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CINEMA
Obra do diretor japonês, que tem retrospectiva no CCSP, conjuga o perene e o mutável, o cotidiano e o cósmico
Estética de Ozu antecipa modernos europeus
Divulgação
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Cena de "Fim de Verão", de Yasujiro Ozu, de 1961, que faz parte de restrospectiva que começa hoje |
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
Um pouco por culpa dos próprios japoneses, que a achavam japonesa demais para interessar aos ocidentais, a obra de
Yasujiro Ozu (1903-63) foi descoberta ainda mais tardiamente pelo Ocidente do que as de Kurosawa e Mizoguchi. O resultado, porém, não foi diferente: Ozu, tema
da retrospectiva que se inicia no
Centro Cultural São Paulo, entrou
na moda.
Ozu entrou na moda por sua
modernidade, o que pareceria um
paradoxo para os que não viam
em sua obra senão o conservadorismo de um cineasta atento à desagregação dos valores tradicionais (e familiares) japoneses frente à modernização.
O cinema moderno europeu do
pós-guerra preparara o público
ocidental para a leitura de Ozu,
mas também propiciara os equívocos: se o público de então se
identificou de pronto com seus
filmes, foi porque estes pareciam,
à primeira vista, prenunciar a
concepção (baziniana) do "cinema da transparência", própria ao
(neo) realismo do pós-guerra, um
cinema desdramatizado de temas
cotidianos filmados em planos
longos e fixos, um cinema mais
próximo da espontaneidade do
documentário.
Foi preciso mais de um estudo
para que se descobrisse o quanto
aqueles filmes obedeciam a um
esquema previamente elaborado,
paulatinamente desenvolvido durante a obra, e o quão sistemático
e rigoroso era Ozu.
Coube então ao crítico Alain
Bergala dar cabo das antigas ilusões: em Ozu, concluiria ele nas
páginas dos "Cahiers du Cinéma", "a enunciação precede o
enunciado", o dispositivo de filmagem antecede à coisa filmada,
rigorosamente.
Pseudônimo americano
Ozu se tornou então uma coqueluche dos próprios diretores
do chamado cinema moderno europeu, especialmente os da terceira geração. Mais do que o rigor estético (minimal) de Ozu, rigor
que antecipa a política do "menos
vale mais" cara aos autores modernos europeus, foi o fato de esse
rigor ter sido aplicado a um manancial comum, a influência do
cinema clássico americano, que
mais aproximou Ozu dos modernos -em nome dessa influência,
Ozu chegou mesmo a usar, como
argumentista, um pseudônimo
nipo-americano, James Maki, cujo pai teria a esperteza dos americanos e a mãe a delicadeza das japonesas.
Ozu chegou, como se sabe, à
montagem-cut, usando falsos
"raccords" de eixo muito antes
dos cineastas modernos, mas, como estes, só chegou a tal descoberta, partindo, em seus primeiros filmes, influenciados pelos
americanos, de "raccords" clássicos, ao estilo hollywoodiano.
Ao quebrar o "raccord" clássico
de olhar (entrecruzado), Ozu passa a legar ao espectador (clássico)
um lugar vazio: como nos lembra
Bergala, o olhar-Ozu não é nem
um olhar-câmera nem um olhar-ficção, mas um olhar indeciso que
deixa o espectador numa posição
flutuante e descentrada, imerso
no vazio em que miram os próprios atores.
Quando morreu, no exato dia
em que completava 60 anos, Ozu
deixou sobre o túmulo a epígrafe:
"Mu". O nada e o pleno, os dois
aspectos da contemplação que
derivam dessa palavra estão presentes em sua obra. Ozu já foi
comparado a um escriba que anota de cócoras os ínfimos fatos cotidianos no grande livro da eternidade e a um pescador que contempla, à margem do rio da vida,
o torvelinho das gerações.
Em sua obra, as dissoluções familiares da moderna sociedade
japonesa são percebidas, em suas
mínimas variações, sob o signo
do tempo. Para ele, já se disse, o
perene e o mutável, o cotidiano e
o cósmico são um só. Humilde e
passivamente, Ozu observa seus
personagens, ciente de que a vida
é sempre simples e que são os homens que a complicam.
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