São Paulo, domingo, 09 de setembro de 2001

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CINEMA
"O Encouraçado Potemkin", "Cidadão Kane", "O Acossado" e "Deus e o Diabo na Terra do Sol" compõem mostra

Cinemam explora arquétipo clássico da revolução

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

De hoje até 14 de outubro, o Cinemam exibe quatro filmes revolucionários para o cinema.
A programação conta com "O Encouraçado Potemkin" (1925), de Sergei Eisenstein, "Cidadão Kane" (1941), de Orson Welles, "Acossado" (1959), de Jean-Luc Godard, e "Deus e o Diabo na Terra do Sol" (1964), de Glauber Rocha, exibidos no auditório Lina Bo Bardi, do MAM, e na PUC.
Fazendo uma leitura dialética da "montagem paralela" criada por D.W. Griffith ("O Nascimento de uma Nação"), Eisenstein chegou à "montagem de oposição". Para ele, o paralelismo de Griffith era fruto de uma concepção burguesa de mundo e de uma visão empírica da sociedade.
Eisenstein busca despertar a consciência e o devir revolucionários através do choque. Em "O Encouraçado Potemkin", as oposições são múltiplas: quantitativas (um-vários), qualitativas (água-terra), intensivas (luz-trevas) e dinâmicas (movimentos ascendentes e descendentes).
Em termos de gênero, a grande sacada foi fazer de seu filme uma crônica estruturada em forma de drama, uma espécie de cinejornal composto como uma tragédia clássica, na forma de cinco atos.
O périplo do cinema clássico é o de Eisenstein: o povo, personagem ideal de seus primeiros filmes, é substituído pela figura do ditador. A alienação do povo alemão e o extermínio do povo judeu: eis por que no cinema moderno do pós-guerra o povo é "o povo que falta".
Em sua perpétua e torturada fabulação do povo brasileiro, Glauber Rocha faz parte dessa história. Em "Deus e o Diabo na Terra do Sol", seguindo as pegadas do devir sertanejo de Euclydes da Cunha, ele faz dos sertões o grande outro do projeto racional-positivista da civilização litorânea brasileira, fabulando um povo capaz de eleger a violência como sua manifestação cultural primeira.
Ao contrário de Eisenstein, Glauber não nega a tradição em favor do novo. Ele prefere transformar, em sua fabulação do "povo por vir", a potência arcaica dos antigos mitos, a ferocidade do misticismo, numa força/pulsão revolucionária (é assim que Glauber substitui a suposta, e algo mítica, última fala do cangaceiro Corisco, "mais fortes são os poderes de Deus", por "mais fortes são os poderes do povo").
Tendo resultado nas atrocidades da Segunda Guerra, o racionalismo e os antigos ideais de verdade do cinema morreram.
O papel de Orson Welles é este: substituindo o "homem verídico" do primeiro cinema por uma série de falsários (shakespearianos) e desmentindo as grandes instituições -a imprensa, neste caso-, Welles mina os valores do american way of life, revelando-lhes a hipocrisia.
Em "Cidadão Kane", ele erige um estrondoso edifício sobre o vazio. Toda a sua complicada estrutura de flashbacks e sua tensão dramático-psicológica provocada por uma montagem de choque e planos em profundidade de campo são construídas em torno de um falso artifício-chave: a palavra-fetiche "rosebud", a pedra de toque subfreudiana que mantém o espectador na ilusão de que, ao final, a ambiguidade do personagem vai ser solucionada.
Em seu arcabouço impalpável, "Cidadão Kane" assinala o início de um movimento que só se concretiza com a nouvelle vague francesa: o cinema começa a voltar-se sobre si mesmo.
O "Acossado", de Godard, é fruto de uma geração (de "cinefilhos") que surgiu no meio do século e da história do cinema e foi a primeira a pensar historicamente o cinema, a se situar numa determinada genealogia.
Trata-se de uma obra esquizofrênica de uma época esquizofrênica, dirão alguns, mas de uma esquizofrenia povoada por toda a história do cinema. Ser de possibilidades, estético-hedonista-desesperado, seu protagonista, Michel Poiccard (Belmondo), não é guiado pelos fundamentos morais de outrora e seus atos gratuitos surgem como um correlato (a)moral dos falsos "raccords" que Godard impõe à montagem.


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