São Paulo, quinta-feira, 09 de novembro de 2006

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análise

Gertrude era mesmo uma chata genial

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Pessoas que se acham geniais sempre provocam incômodo.
Gertrude Stein se achava a melhor escritora de todos os tempos. Não era. Mas a convicção com que acreditava em sua genialidade é mais uma face de sua teimosa capacidade de sempre nos colocar em xeque.
Grande parte de sua novidade está na descoberta da potência da repetição. Se existem os prazeres da novidade e os prazeres da redundância, Gertrude Stein inventou o casamento entre as duas. Repetir até cansar, até coisificar os significados. Repetir até atingir os limites da linguagem e ultrapassar as convenções da elegância e da economia. Repetir frases ciclicamente, acrescentando sempre uma nova palavra. Um jogo que chega a cansar em sua dificuldade, mas cuja chatice se constitui como um desafio. Uma "chata genial", nas palavras de Augusto de Campos.
Já se disse que Stein criou o cubismo na literatura. Ensinou a ler com os olhos: "um escritor deve escrever com os olhos como um pintor deve pintar com os ouvidos", dizia. Ler por todos os lados, em todas as ordens, começando por qualquer lugar, como numa tela de seu amigo Picasso. O texto como um lugar, um espaço, onde cabem coisas: "as palavras ou coisas que fazem o que eu olhava ser aquilo mesmo eram sempre palavras que para mim muito exatamente se relacionavam com aquela coisa, a coisa que eu estava olhando mas freqüentemente como eu digo nada a ver com o que quaisquer palavras fariam que descrevesse a coisa".
Sua frase mais famosa, "uma rosa é uma rosa é uma rosa", infelizmente caiu na vala comum do pior tipo de repetição, tornando-se um estereótipo. Mas um de seus sentidos pouco explorados é também outro traço fundamental da criação de Gertrude: a instauração de um presente contínuo na narrativa, o "ing" do inglês, o nosso gerúndio. É como se o objeto em questão estivesse sempre re-acontecendo. Uma rosa está sendo uma rosa no momento em que é pronunciada; está sendo a palavra "rosa" e o sabor de dizê-la.
Suas peças, poemas, romances e autobiografias de todo mundo, além do papel que exercia como embaixatriz das vanguardas em Paris, fazem jus à frase que já não tenho certeza se é dela, mas que lhe cairia muito bem: "o dever do cavalo é botar um ovo".


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