São Paulo, terça-feira, 09 de dezembro de 2008

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Crítica/erudito

"Dido e Enéas" vai à essência da ópera, em ótima encenação

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Primeiro aninhada em rolos de papel bolha, depois sentada numa vitrine de vidro vazia, no canto do galpão, Luisa Francesconi acabava de cantar, lindamente, a famosa ária suicida da rainha Dido. Enrolava agora fita isolante na boca e no pescoço -aquela fita listada amarela e preta, que demarca cenas de crime- enquanto se ouvia, de um pequeno aparelho de som portátil a seus pés, a repetição gravada de um trecho da ária, embalando a rainha, reduzida agora a peça morta de museu.
A cena dá a dimensão de arrojo e invenção dessa montagem da ópera "Dido e Enéas", de Purcell (1659-1695), dirigida por Antonio Araújo, com participação de atores do seu Teatro da Vertigem. Estreada em setembro, para marcar a inauguração da sede definitiva da Central de Produção Chico Giacchieri (galpão cenográfico do Teatro Municipal, atrás do estádio do Canindé), a ópera voltou ao cartaz até anteontem, sempre sob a direção musical de Tiago Pinheiro, regendo o ótimo Coral Paulistano e uma Camerata Barroca "ad hoc", formada por músicos da Orquestra Experimental de Repertório, mais teorba/guitarra barroca e cravo.
Faltou dizer duas coisas na descrição da cena de morte da rainha. A primeira é óbvia: na versão original, as coisas não se dão bem assim. A segunda é que aqui, depois de morta, surge em cena um menino (que já aparecera antes, agarrado ao pescoço de Dido) e deixa no seu colo um cartaz com os dizeres "Dido e Enéas 2008". E mais uma: a luz (de Guilherme Bonfanti) transporta tudo para outra dimensão, não só do espaço, mas do tempo -o nosso tempo.

Adaptação ao presente
Tudo nessa montagem, com "dramaturgismo" de Silvia Fernandes, foi cuidadosamente reimaginado: transportado para os dias de hoje (figurino, contexto -ambiente empresarial, migrações de africanos para a Itália) e, de maneira bem específica, para o próprio galpão (com direito ao uso de um caminhão e de um ônibus, sem falar em ferros, canos, pátio, árvores, o céu anoitecendo). Os riscos são do "métier"; aqui e ali, detalhes parecem escapar do registro, como esse menino trazendo a legenda, ou o Espírito que porta a mensagem de Júpiter ao herói Enéas, ordenando que abandone a Rainha e parta para fundar a nova Tróia -será que o mensageiro precisava mesmo ser um motoboy com um envelope da FedEx?
Mas são detalhes, como o esdrúxulo acento no nome do herói, que não comprometem uma das montagens mais originais de ópera em muito tempo na cidade. Do início ao fim, são vários planos em contraponto. Aos atores cabe a contrarregragem explícita. É o plano "real", que tem um efeito importante: confere ao artificialismo na atuação dos cantores uma dimensão superteatral, em que cada gesto vira uma espécie de comentário de si.

Condução musical enérgica
Para além do teatro e do metateatro, fica a música do gênio barroco, conduzida com energia, sem pretensões de interpretação "autêntica", mas também sem se esquecer dessa ambição. Francesconi e Leonardo Neiva cantam o casal trágico: Rosemeire Moreira é Belinda e Silvia Tessuto, a Feiticeira.
Não é fácil dar vida a personagens tão alegóricos, num roteiro tão abreviado como esse, em que nenhum caráter tem tempo de evoluir. Por conta disso mesmo, a montagem de Antonio Araújo acaba indo mais longe: faz da vida uma das máscaras da morte e toca, assim, de dentro para fora, na essência da ópera, lá dentro do galpão de produção.

Avaliação: ótimo


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