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Crônica paulistana
"Uma ligação fantástica com seu próprio corpo." Não é lindo?
GUSTAVO PIQUEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Uma ligação fantástica com seu próprio corpo, que é o
órgão mais próximo a você."
Não é lindo? A frase encontra-se no painel de entrada da
mostra "Corpo Humano: Real e
Fascinante", na Oca. Mais de
120 mil pessoas já admiraram
16 cadáveres humanos e 225
órgãos dissecados. O objetivo
da exposição? "Ressaltar que a
única coisa que o ser humano
carrega desde seu nascimento
até a morte é o corpo." De novo,
lindo. Não achou? No "Fantástico", o Pedro Bial achou. E,
emocionado, deu a dica: "Você
vai chorar... De beleza".
Para isso, basta entrar em
"Esqueleto", o primeiro dos nove setores. Atenta a um crânio
com todos os ossos didaticamente separados, a mocinha se
surpreende. "Nossa! Deve ser
difícil disso funcionar, não?"
Deve, sim. Bem difícil. Na verdade, em alguns casos é um
pouco mais do que em outros.
A poucos metros, o careca vê
cair por terra uma de suas mais
arraigadas crenças. "Pô, Nair,
pensei que o joelho fosse mais
complexo", lamenta, debruçado sobre um par de ossos.
Sim, meu desafortunado
amigo. A realidade por vezes
nos decepciona. Mas, ainda que
dura, precisamos enfrentá-la.
Chega de viver na ilusão: o joelho não é complexo. Não.
Outra visitante, ao observar
um cérebro picado em cinco fatias perfeitas, conclui, invejosa:
"Que lâmina, hein?", provavelmente recordando-se da enorme dificuldade que tem para
cortar bifes com aquelas facas
velhas e mal amoladas de sua
cozinha.
O alcance da mostra ultrapassa o mero conhecimento
anatômico. "Vem ver, Rafinha!", apressa-se a mãe próxima a um pulmão destruído pelo
tabaco. "Viu por que não pode
fumar quando crescer, Rafinha?" Ao lado do órgão, uma
urna de vidro convida os fumantes a jogarem fora seus maços e largarem o vício imediatamente.
Dentro dela, em meio a centenas de pacotes de cigarro,
uma embalagem de Mentos me
fez concluir que talvez a mãe do
Rafinha tenha sido por demais
enfática, deixando o menino
mais apavorado do que deveria.
Vidros de azeitona
Delicados sentimentos humanistas também afloram pelos corredores. Defronte à seqüência de embriões que ilustram a evolução do feto humano semana a semana, um gorducho carioca comenta com o
casal de amigos. "Olha só,
merrmão! Enfiaram a chinesada em vidros de azeitona!" E ri
sozinho. No último tubo, deixa
de lado seu incrível senso de
humor e demonstra profunda
compreensão dos fatos. "O feto
é igual a um adulto, só que menorzinho." Brilhante, merrmão. Brilhante.
Alguns visitantes saem até
estimulados. Querem mais.
"Nossa, deve ser divertidíssimo
trabalhar com isso", afirma a
jovem ao admirar um cadáver
fatiado em cem pedaços (infelizmente, não posso afirmar se
tamanha animação referia-se
ao vestibular para medicina ou
a alguma carreira mais arrojada, como a de serial killer).
Por fim, claro, a lojinha. Caneca com o logo da exposição.
Camiseta de esqueleto. Se preferir aprofundar-se no tema, leve um guia de oncologia. Ou de
ginecologia. Sem falar no fundamental "Manual de Dissecação Humana". Obra, com certeza, divertidíssima.
E ainda tem mais. Tem. A
Oca abriga, no piso inferior, outra mostra de sucesso. "Leonardo da Vinci - A Exibição de um
Gênio". Entre réplicas de pinturas e projetos do toscano,
surgem, nas paredes, algumas
de suas mais célebres frases. "O
pé humano é uma obra-prima
da engenharia e uma obra de
arte" é minha favorita. Síntese
do gênio que foi Leonardo.
Além disso, numa imperdível
promoção, você pode comprar
um kit com catálogo da exposição + DVD "O Código Da Vinci"
(afinal, é tudo "Da Vinci", né?)
por R$ 55. Se a grana estiver
curta, tranqüilo. O par de Havaianas da Mona Lisa sai R$ 15.
Olha, querido Bial: estou com
você, viu? É sentar e chorar.
Sentar e chorar.
O designer GUSTAVO PIQUEIRA é autor do
"Manual Prático do Paulistano Moderno e Descolado" (ed. Martins Fontes)
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