São Paulo, domingo, 10 de junho de 2007

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Crônica paulistana

"Uma ligação fantástica com seu próprio corpo." Não é lindo?

GUSTAVO PIQUEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Uma ligação fantástica com seu próprio corpo, que é o órgão mais próximo a você." Não é lindo? A frase encontra-se no painel de entrada da mostra "Corpo Humano: Real e Fascinante", na Oca. Mais de 120 mil pessoas já admiraram 16 cadáveres humanos e 225 órgãos dissecados. O objetivo da exposição? "Ressaltar que a única coisa que o ser humano carrega desde seu nascimento até a morte é o corpo." De novo, lindo. Não achou? No "Fantástico", o Pedro Bial achou. E, emocionado, deu a dica: "Você vai chorar... De beleza".
Para isso, basta entrar em "Esqueleto", o primeiro dos nove setores. Atenta a um crânio com todos os ossos didaticamente separados, a mocinha se surpreende. "Nossa! Deve ser difícil disso funcionar, não?"
Deve, sim. Bem difícil. Na verdade, em alguns casos é um pouco mais do que em outros.
A poucos metros, o careca vê cair por terra uma de suas mais arraigadas crenças. "Pô, Nair, pensei que o joelho fosse mais complexo", lamenta, debruçado sobre um par de ossos.
Sim, meu desafortunado amigo. A realidade por vezes nos decepciona. Mas, ainda que dura, precisamos enfrentá-la. Chega de viver na ilusão: o joelho não é complexo. Não.
Outra visitante, ao observar um cérebro picado em cinco fatias perfeitas, conclui, invejosa: "Que lâmina, hein?", provavelmente recordando-se da enorme dificuldade que tem para cortar bifes com aquelas facas velhas e mal amoladas de sua cozinha.
O alcance da mostra ultrapassa o mero conhecimento anatômico. "Vem ver, Rafinha!", apressa-se a mãe próxima a um pulmão destruído pelo tabaco. "Viu por que não pode fumar quando crescer, Rafinha?" Ao lado do órgão, uma urna de vidro convida os fumantes a jogarem fora seus maços e largarem o vício imediatamente.
Dentro dela, em meio a centenas de pacotes de cigarro, uma embalagem de Mentos me fez concluir que talvez a mãe do Rafinha tenha sido por demais enfática, deixando o menino mais apavorado do que deveria.

Vidros de azeitona
Delicados sentimentos humanistas também afloram pelos corredores. Defronte à seqüência de embriões que ilustram a evolução do feto humano semana a semana, um gorducho carioca comenta com o casal de amigos. "Olha só, merrmão! Enfiaram a chinesada em vidros de azeitona!" E ri sozinho. No último tubo, deixa de lado seu incrível senso de humor e demonstra profunda compreensão dos fatos. "O feto é igual a um adulto, só que menorzinho." Brilhante, merrmão. Brilhante.
Alguns visitantes saem até estimulados. Querem mais. "Nossa, deve ser divertidíssimo trabalhar com isso", afirma a jovem ao admirar um cadáver fatiado em cem pedaços (infelizmente, não posso afirmar se tamanha animação referia-se ao vestibular para medicina ou a alguma carreira mais arrojada, como a de serial killer).
Por fim, claro, a lojinha. Caneca com o logo da exposição. Camiseta de esqueleto. Se preferir aprofundar-se no tema, leve um guia de oncologia. Ou de ginecologia. Sem falar no fundamental "Manual de Dissecação Humana". Obra, com certeza, divertidíssima.
E ainda tem mais. Tem. A Oca abriga, no piso inferior, outra mostra de sucesso. "Leonardo da Vinci - A Exibição de um Gênio". Entre réplicas de pinturas e projetos do toscano, surgem, nas paredes, algumas de suas mais célebres frases. "O pé humano é uma obra-prima da engenharia e uma obra de arte" é minha favorita. Síntese do gênio que foi Leonardo.
Além disso, numa imperdível promoção, você pode comprar um kit com catálogo da exposição + DVD "O Código Da Vinci" (afinal, é tudo "Da Vinci", né?) por R$ 55. Se a grana estiver curta, tranqüilo. O par de Havaianas da Mona Lisa sai R$ 15.
Olha, querido Bial: estou com você, viu? É sentar e chorar. Sentar e chorar.


O designer GUSTAVO PIQUEIRA é autor do "Manual Prático do Paulistano Moderno e Descolado" (ed. Martins Fontes)


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