São Paulo, quinta-feira, 10 de agosto de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crítica/teatro

Atriz narra pesadelo de guerra com fina ironia

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Em tempos de guerra no Líbano, é inoportuna uma peça sobre o Holocausto? Não, muito pelo contrário. Aqui, um rapaz de 17 anos sai para comprar pão e, sem nenhuma explicação, é preso e mandado para um campo de concentração em que nada faz sentido. Antes de qualquer contexto histórico e político, antes de se perder em justificativas e culpas, é preciso condenar como inadmissível qualquer atentado à liberdade e à dignidade, em qualquer época e lugar. Renata Jesion, jovem atriz que já trabalhou com Antunes Filho e Gerald Thomas, conta em "121.023J" a história de seu pai, Majer Jesion. Não procura transformá-lo em herói, não alardeia a dor insuperável que costuma se diluir em lágrimas antes de se expor de modo essencial. Faz uso de um fino humor, mais próximo da ironia amarga de Franz Kafka do que a carnavalização amenizadora de Roberto Benigni (diretor e protagonista de "A Vida É Bela"). Sabe que, mais do que por bravura, a sobrevivência nessas situações-limite foi devida ao acaso, o que engloba a sua própria existência: contar a aventura do pai é buscar a razão por ter podido nascer.

Tática de guerra
O número do título faz assim menção à desumanização da guerra, tanto na tática perversa de tatuar um número que substitua a história pessoal do prisioneiro quanto na redução estatística das baixas: lê-se nos jornais quantas vítimas houve no dia e mais raramente quem eram. Mas também traz uma mensagem secreta: é a junção da data de nascimento de seu pai com a sua, junto à inicial do sobrenome. A afirmação da vida estando assim discretamente no núcleo da narrativa, o seu contexto é voluntariamente o mais geral possível. Não se pronuncia a palavra "judeu" nem nenhum nome histórico. Nesta peça, construída em anos de pesquisa de relatos, pouco acontece, mas essa simplicidade é fundamental para que o seu alcance seja o mais amplo possível. O rapaz não desiste da vida porque uma voz dentro dele o impede: é a voz de sua filha, mas também de si mesmo no futuro, que traz a necessidade de continuar. Ariela Goldmann honrou a responsabilidade de dirigir esta montagem com o máximo de delicadeza. Com uma direção de arte minimalista, que chega à miniatura em uma cena antológica que revela as câmeras de gás, tira o máximo proveito da figura de adolescente desajeitado de Renata, que atrai uma imediata simpatia. Apoiando-se no contraponto eficiente de Mauro Schames e Zemanuel Piñero, a atriz expõe sua história como um estranho conto de fadas, que deve sempre ser contado, por ser um pesadelo repetitivo. Senhores da guerra, apressem-se em encontrar uma saída. As pessoas precisam comprar pão.


121.023J
    
Texto: Renata Jesion
Direção: Ariela Goldmann
Com: Zemanuel Piñero, Renata Jesion e Mauro Schames
Quando: de hoje até dom., às 19h30
Onde: Conjunto Cultural da Caixa (pça. da Sé, 111, Sé, tel. 3107-0498)
Quanto: grátis



Texto Anterior: Maitê Proença também sabe escrever
Próximo Texto: CCBB repatria bailarinos do exterior
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.