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Crítica/teatro
Atriz narra pesadelo de guerra com fina ironia
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Em tempos de guerra no
Líbano, é inoportuna
uma peça sobre o Holocausto? Não, muito pelo contrário. Aqui, um rapaz de 17
anos sai para comprar pão e,
sem nenhuma explicação, é
preso e mandado para um campo de concentração em que nada faz sentido.
Antes de qualquer contexto
histórico e político, antes de se
perder em justificativas e culpas, é preciso condenar como
inadmissível qualquer atentado à liberdade e à dignidade, em
qualquer época e lugar.
Renata Jesion, jovem atriz
que já trabalhou com Antunes
Filho e Gerald Thomas, conta
em "121.023J" a história de seu
pai, Majer Jesion.
Não procura transformá-lo
em herói, não alardeia a dor insuperável que costuma se diluir
em lágrimas antes de se expor
de modo essencial. Faz uso de
um fino humor, mais próximo
da ironia amarga de Franz Kafka do que a carnavalização
amenizadora de Roberto Benigni (diretor e protagonista de
"A Vida É Bela").
Sabe que, mais do que por
bravura, a sobrevivência nessas
situações-limite foi devida ao
acaso, o que engloba a sua própria existência: contar a aventura do pai é buscar a razão por
ter podido nascer.
Tática de guerra
O número do título faz assim
menção à desumanização da
guerra, tanto na tática perversa
de tatuar um número que substitua a história pessoal do prisioneiro quanto na redução estatística das baixas: lê-se nos
jornais quantas vítimas houve
no dia e mais raramente quem
eram. Mas também traz uma
mensagem secreta: é a junção
da data de nascimento de seu
pai com a sua, junto à inicial do
sobrenome.
A afirmação da vida estando
assim discretamente no núcleo
da narrativa, o seu contexto é
voluntariamente o mais geral
possível. Não se pronuncia a
palavra "judeu" nem nenhum
nome histórico.
Nesta peça, construída em
anos de pesquisa de relatos,
pouco acontece, mas essa simplicidade é fundamental para
que o seu alcance seja o mais
amplo possível. O rapaz não desiste da vida porque uma voz
dentro dele o impede: é a voz de
sua filha, mas também de si
mesmo no futuro, que traz a
necessidade de continuar.
Ariela Goldmann honrou a
responsabilidade de dirigir esta
montagem com o máximo de
delicadeza. Com uma direção
de arte minimalista, que chega
à miniatura em uma cena antológica que revela as câmeras de
gás, tira o máximo proveito da
figura de adolescente desajeitado de Renata, que atrai uma
imediata simpatia.
Apoiando-se no contraponto
eficiente de Mauro Schames e
Zemanuel Piñero, a atriz expõe
sua história como um estranho
conto de fadas, que deve sempre ser contado, por ser um pesadelo repetitivo. Senhores da
guerra, apressem-se em encontrar uma saída. As pessoas precisam comprar pão.
121.023J
Texto: Renata Jesion
Direção: Ariela Goldmann
Com: Zemanuel Piñero, Renata Jesion
e Mauro Schames
Quando: de hoje até dom., às 19h30
Onde: Conjunto Cultural da Caixa (pça.
da Sé, 111, Sé, tel. 3107-0498)
Quanto: grátis
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