São Paulo, segunda-feira, 11 de dezembro de 2006

Índice

Crítica/"Outono e Inverno"

Atores brilham em montagem sutil

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
Sérgio Britto e Denise Weinberg em cena do espetáculo em cartaz no CCBB

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

São sete e meia da noite: Erick, sua mulher, Margreta, e as filhas, Ann e Ewa, acabam de jantar. Encontram-se uma vez por mês, para reabrir velhas feridas. Às nove e meia, quando as filhas saírem, não restará pedra sobre pedra -até o mês seguinte.
No cardápio do dramaturgo contemporâneo sueco Lars Norén, os mesmos ingredientes da "Longa Jornada Noite Adentro", de Eugene O'Neill, na receita da nouvelle cuisine de Ingmar Bergman: velhos rancores sussurrados, segredos de família expostos sem nenhum melodrama. Embora essa cena única vá fazendo camada por camada a vivissecção implacável do cotidiano em tempo real, como se observado pela janela do prédio em frente, não se trata aqui de um naturalismo moralista e documental.
Pelo contrário: o que garante a verossimilhança da cena é justamente a sua estilização. Os diálogos são entrecortados, alusões interferem umas nas outras, referências ao passado ou alusões literárias ("Quando Despertarmos Entre os Mortos" e "Humilhados e Ofendidos"), e vozes sobrepostas dão lugar a pesados silêncios, como na vida real, mas basta uma pequena hesitação na deixa, uma pequena variação da fala dos atores -ou seja, a concessão ao espontâneo, como no naturalismo- e a ilusão de realidade se desfaz.
O realismo talvez seja assim o gênero mais difícil de encenar, por ser essa convenção invisível -e exige um encenador preciso e sutil, como Eduardo Tolentino, que pode dar a impressão de estar simplesmente aderindo a uma convenção fácil, justamente quando batalha com os atores pela perfeição de cada detalhe. Assim, um caleidoscópio de marcas paralelas, de distribuição de pesos, de pequenos balés gestuais marcando subtextos prende a atenção do espectador mais do que algum truque de carpintaria teatral.
Ninguém melhor então do que Eduardo Tolentino para fazer a estréia brasileira de Norén -o menos, aqui, é mais, e a ausência de trilha sonora, deixando o ritmo inteiramente na responsabilidade dos atores, serve mais ao espetáculo do que a luz excessivamente simbólica de Wilson Reiz.
Por esse pulso firme do encenador brilham os atores. Sérgio Britto hipnotiza a platéia com uma doçura infinita, meios sorrisos, silêncios desamparados.
Suely Franco prova que pode muito mais do que ser engraçada, tirando de si uma profundidade surpreendente. Velhas comparsas do diretor, Emilia Rey, fazendo Ewa, a filha que deu certo, se contém para explodir no final, enquanto que Denise Weinberg mantém a energia provocadora de revoltada Ann, vital para a peça não girar em falso, embora nenhuma grande revelação seja feita.
Verdadeiro anti-Nelson Rodrigues, que devassa os avessos da família, fantasias de incesto em auto-destruições carinhosas, mas sem nenhuma insolência, nenhum deboche implícito, apenas com um humor triste e conformado, Lars Norén perturba e consola ao mesmo tempo.
Não há salvação na família, revela essa peça de duas décadas atrás, parte de uma trilogia -e sua fase atual irá isolar o indivíduo na sociedade. Mas não há nenhuma tragédia nisso também. Jantares de família são assim mesmo: cada um é a causa e o remédio da dor do outro, como todos se lembram a cada Natal.


OUTONO E INVERNO     
Texto:
Lars Norén
Direção: Eduardo Tolentino
Com: Suely Franco, Sérgio Britto, Denise Weinberg e Emilia Rey
Quando: qui. a sáb., às 19h30; dom., às 18h; até 17/12
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil -teatro (r. Álvares Penteado, 112, centro, tel. 3113-3651)
Quanto: R$ 15


Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.