São Paulo, domingo, 13 de maio de 2007

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Crítica/teatro

Em duas montagens, Freire Filho busca o sentido do mundo

Diretor está à frente de "O Púcaro Búlgaro", de Campos de Carvalho, e "O Continente Negro", de Marco de la Parra

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
O romance-em-cena "O Púcaro Búlgaro", no Sesc Consolação


SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Bem-aventurados aqueles que vivem do prazer de fazer bem-feito aquilo que gostam de fazer. Aderbal Freire Filho é um desses privilegiados. Suas encenações têm uma marca clara: arriscam-se na forma, em geral a partir de um texto difícil, mas ancoradas por uma precisão técnica que se irradia por todos os colaboradores. Assim, cenário, trilha, figurino e luz são sofisticados sobretudo porque compartilham o sentido do espetáculo com os atores, que devem sempre se desdobrar alegremente em proezas técnicas. Quando estes não estão à altura do desafio, aliás, o resultado pode ser desastroso, mas não é o caso nas duas encenações em cartaz atualmente na cidade.
"O Púcaro Búlgaro", no Sesc Consolação, é um romance-em-cena puro sangue, ou seja, é mais uma etapa vencida na formação desse gênero novo que leva cada ator a ser narrador de si mesmo no próprio momento em que age, mantendo o texto integral por meio de um vertiginoso rodízio de personagens.
A experiência anterior, "O que Diz Molero", era mais radical nas suas quatro horas e deslumbrava pela novidade, mas este romance de bolso é uma consolidação do gênero, acessível a qualquer público.
O que pode parecer preguiça do adaptador exige, pelo contrário, um faro certeiro para encontrar um texto que funcione nessa forma e, em geral, só nessa forma. O humor furioso do romance de Campos de Carvalho se filia ao surrealismo sobretudo pela insolência em confundir as fronteiras do verossímil. O protagonista Hilário fica estarrecido diante de um banal vaso antigo encostado em um museu, pois sua designação técnica (um púcaro) ecoa na palavra que designa sua procedência (búlgaro), e o estranhamento pelas palavras contamina o real: existe mesmo uma "Bulgária"? A expedição em paródia antropológica que se impõe aos personagens da trama, para atestar a existência da Bulgária, remete não só à viagem de Molero mas à patafísica de Jarry, os ready-mades de Duchamp e as performances de Raymond Roussel.
Os atores surfam assim um fluxo verbal chegando ao aeróbico na perfomance de Gillray Coutinho, catalisador de um elenco de nomes igualmente estrambóticos: Augusto Madeira, Ana Barroso, Isio Ghelman e Sávio Moll "não existem", como se diz quando se quer elogiar alguém por se jogar alegremente no inusitado.

Cubo mágico
O prazer da forma se forra de uma investigação mais dolorida sobre a solidão em "O Continente Negro", do chileno Marco Antônio de la Parra. Aqui, os atores igualmente se desdobram em vários personagens, mas a partir de uma atuação mais realista, que se fragmenta e se recombina como em um cubo mágico, o quebra-cabeça ao qual o instigante e ágil cenário de André Cortez parece remeter.
Na peça em cartaz na Faap, um professor de desenho apaixonado por sua aluna; uma atriz decadente querendo manter as aparências; um triângulo amoroso entre irmãs: são várias tramas sobrepostas, como novelas zapeadas por um controle remoto alucinado, que se interpenetram e se ecoam, pondo à prova a concentração dos atores.
A experiência em televisão de Yara de Novaes, Débora Fallabela e Ângelo Antonio, longe de limitar sua expressão em cena, é condição para que o espetáculo funcione. Um gestual contido, uma caracterização beirando o clichê são apenas a matéria-prima para a desconstrução hiperrealista que o texto exige, como nos quadros de Edward Hopper.
É antológico, por exemplo, o modo como Ângelo Antônio alterna tons cômicos e trágicos em uma cena de bebedeira, ou como a lousa da aluna Débora Falabella se expande por todo o cenário sem prejuízo para as cenas que virão depois.
Curiosamente, o título da peça, fazendo menção a um lugar distante no qual se abrigaria o perdido sentido do mundo, ecoa também o tema do "Púcaro Búlgaro".
Com tipos diferentes de humor, pela hilariedade ou pelo sarcasmo amargo, mas com uma mesma qualidade de realização, os dois espetáculos testemunham o constante esforço de se dar um significado à vida, que é próprio do teatro, sobretudo quando esse teatro é feito sob a direção de Aderbal Freire Filho.


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