São Paulo, Sábado, 14 de Agosto de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA "CAMINHO DOS SONHOS"
Filme esconde experiência judaica

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

A proeza de "Caminho dos Sonhos" é, sem dúvida, ter trazido Elliott Gould e Talia Shire ao Brasil. Um lance não apenas mercadológico, já que sobretudo Gould trabalha com empenho e preocupação em compor um personagem verdadeiro.
Daí ser um tanto incompreensível a opção seguinte do diretor Lucas Amberg: tendo Gould e Shire como imigrantes judeus que chegam ao Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, vindo da Europa, qual o sentido de eles serem dublados, de suas vozes aparecerem com esse português límpido, característico dos dubladores de filmes para TV?
A escolha óbvia seria fazer os personagens falarem iídiche. Pode-se argumentar que a língua nada mais é do que uma convenção. Mas essa convenção tem um peso descomunal no caso específico da colônia judaica. O iídiche é por excelência o dialeto da diáspora, o elemento que unifica a experiência de um povo despojado de pátria e perseguido, entre outras coisas, em função disso.
A escolha pela dublagem talvez não determine, mas explica fartamente os problemas posteriores do filme, cuja trama gira em torno de Mardo (Edward Boggiss), a discriminação que sofre em um colégio católico e seu romance com uma não-judia, Ana (Thais Araujo), negra para completar.
Entramos aí em um registro Romeu e Julieta bem pouco interessante, desde que o filme parece ter pouca preocupação em singularizar seus personagens. Quem são os judeus? Não conhecemos seus cultos, suas crenças, seus costumes, suas comidas, as experiências que trazem da Europa.
Tudo que "Caminho dos Sonhos" nos diz é, em suma, aquilo que ninguém ignora: os judeus são vítimas de preconceito, quando não de franca discriminação.
Como opta por não se deter em aspectos fundamentais, como a retração dos judeus dessa geração (seu costume de ter como referência os "patrícios", levando-os a viver em bairros específicos, onde talvez se sentissem mais à vontade para praticar sua cultura), o filme baseado no romance de Moacyr Scliar termina por também não dar conta do conflito de gerações que se desenha no enredo (isto é, o jovem Mardo tende a se integrar à cultura brasileira, relacionando-se indistintamente com judeus e não-judeus), nem da circunstância política enunciada (a história se passa nos anos 60, de agitação e revolta estudantil).
Ou seja, se "Caminho dos Sonhos" enuncia uma escrita realista, essa escrita é feita de convenções. Temos, por exemplo, um senhor judeu que não é um senhor judeu, mas se contenta em parecer um senhor judeu (apesar dos esforços de Gould, notáveis, mas soterrados pela dublagem), ou um jovem judeu que se contenta em virar músico e namorar uma não-judia.
Apenas para dar um exemplo de como essa história é mais rica, pode-se lembrar dois fatos que nenhum judeu ignora: a existência de bancos cooperativos no Bom Retiro, para dar crédito a membros da colônia e oferecer-lhes sustentação em seus negócios, é uma. O hábito de jovens judeus comunistas de ir em grupo comer carne de porco diante de sinagogas, aos sábados, é outro.
Claro, são exemplos. Poderiam ser substituídos por outros, capazes de introduzir o espectador àquilo que tem de particular a experiência judaica no Brasil, neste século. Essa experiência é que está ausente do filme, fazendo com que todo o seu desenvolvimento seja, no fim das contas, um acúmulo de sombras apanhadas e ritmadas tropegamente, em que toda a preocupação parece a de fixar um mundo verossímil.
É certo que o filme falha em inúmeros momentos em seu intento de verossimilhança. Esse é o menor dos problemas. O grave é que o espectador saia da sala com a sensação de vivenciar uma não-experiência da imigração judaica no Brasil, um assunto tão rico quanto intocado pelo cinema.


Avaliação:  

Texto Anterior: Cinema: "Romance" não é um grande amor
Próximo Texto: Artes Plásticas: Nugent busca inspiração na Amazônia
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.