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CRÍTICA "CAMINHO DOS SONHOS"
Filme esconde experiência judaica
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
A proeza de "Caminho dos Sonhos" é, sem dúvida, ter trazido
Elliott Gould e Talia Shire ao Brasil. Um lance não apenas mercadológico, já que sobretudo Gould
trabalha com empenho e preocupação em compor um personagem verdadeiro.
Daí ser um tanto incompreensível a opção seguinte do diretor
Lucas Amberg: tendo Gould e
Shire como imigrantes judeus
que chegam ao Brasil durante a
Segunda Guerra Mundial, vindo
da Europa, qual o sentido de eles
serem dublados, de suas vozes
aparecerem com esse português
límpido, característico dos dubladores de filmes para TV?
A escolha óbvia seria fazer os
personagens falarem iídiche. Pode-se argumentar que a língua
nada mais é do que uma convenção. Mas essa convenção tem um
peso descomunal no caso específico da colônia judaica. O iídiche é
por excelência o dialeto da diáspora, o elemento que unifica a experiência de um povo despojado
de pátria e perseguido, entre outras coisas, em função disso.
A escolha pela dublagem talvez
não determine, mas explica fartamente os problemas posteriores
do filme, cuja trama gira em torno
de Mardo (Edward Boggiss), a
discriminação que sofre em um
colégio católico e seu romance
com uma não-judia, Ana (Thais
Araujo), negra para completar.
Entramos aí em um registro Romeu e Julieta bem pouco interessante, desde que o filme parece ter
pouca preocupação em singularizar seus personagens. Quem são
os judeus? Não conhecemos seus
cultos, suas crenças, seus costumes, suas comidas, as experiências que trazem da Europa.
Tudo que "Caminho dos Sonhos" nos diz é, em suma, aquilo
que ninguém ignora: os judeus
são vítimas de preconceito, quando não de franca discriminação.
Como opta por não se deter em
aspectos fundamentais, como a
retração dos judeus dessa geração
(seu costume de ter como referência os "patrícios", levando-os a
viver em bairros específicos, onde
talvez se sentissem mais à vontade para praticar sua cultura), o filme baseado no romance de
Moacyr Scliar termina por também não dar conta do conflito de
gerações que se desenha no enredo (isto é, o jovem Mardo tende a
se integrar à cultura brasileira, relacionando-se indistintamente
com judeus e não-judeus), nem
da circunstância política enunciada (a história se passa nos anos 60,
de agitação e revolta estudantil).
Ou seja, se "Caminho dos Sonhos" enuncia uma escrita realista, essa escrita é feita de convenções. Temos, por exemplo, um senhor judeu que não é um senhor
judeu, mas se contenta em parecer um senhor judeu (apesar dos
esforços de Gould, notáveis, mas
soterrados pela dublagem), ou
um jovem judeu que se contenta
em virar músico e namorar uma
não-judia.
Apenas para dar um exemplo
de como essa história é mais rica,
pode-se lembrar dois fatos que
nenhum judeu ignora: a existência de bancos cooperativos no
Bom Retiro, para dar crédito a
membros da colônia e oferecer-lhes sustentação em seus negócios, é uma. O hábito de jovens judeus comunistas de ir em grupo
comer carne de porco diante de
sinagogas, aos sábados, é outro.
Claro, são exemplos. Poderiam
ser substituídos por outros, capazes de introduzir o espectador
àquilo que tem de particular a experiência judaica no Brasil, neste
século. Essa experiência é que está
ausente do filme, fazendo com
que todo o seu desenvolvimento
seja, no fim das contas, um acúmulo de sombras apanhadas e ritmadas tropegamente, em que toda a preocupação parece a de fixar um mundo verossímil.
É certo que o filme falha em inúmeros momentos em seu intento
de verossimilhança. Esse é o menor dos problemas. O grave é que
o espectador saia da sala com a
sensação de vivenciar uma não-experiência da imigração judaica
no Brasil, um assunto tão rico
quanto intocado pelo cinema.
Avaliação:
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