São Paulo, segunda-feira, 14 de outubro de 2002

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MÚSICA

Orquestra Popular de Câmara faz apresentação no Sesc Ipiranga que será lançada em disco até o final deste ano

O que nos leva além das meras paixões

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Baião, bolero , congado, toada, seresta: não necessariamente ao mesmo tempo, mas quase. E isso não é tudo: tinha também música de vanguarda, improvisação livre, sugestões de música oriental, mais Lennon e McCartney e Nino Rota. Nada que cause surpresa, para quem conhece a Orquestra Popular de Câmara. Mas foi uma linda surpresa, mesmo assim, a apresentação deles, sexta passada, no Sesc Ipiranga, onde a Orquestra gravava ao vivo seu segundo disco (selo Núcleo Contemporâneo).
O instrumental não parece menos esdrúxulo, à primeira vista: piano, voz, acordeom, bandolim, flauta, saxofone, violoncelo, contrabaixo, bateria e percussão. Não é o que diz o nome? "Orquestra" (grupo grande de instrumentistas), "popular" (com instrumentos da música popular) "de câmara" (maior do que conjunto, menor do que sinfônica). Para ser preciso, faltaria só acrescentar "brasileira" -porque a mistura se dá sempre pelo viés de um pensamento musical daqui- ou "de São Paulo", porque talvez só numa cidade tão rica de influências e, hoje em dia, tão generosa nas respostas, se pudesse compor e tocar música assim.
Vem regida de dentro, pelo pianista, compositor e arranjador Benjamin Taubkin. A seu lado, la Salmaso, que neste contexto é uma instrumentista de cordas: as cordas vocais.
Final de "Bayati", cantiga do Turcomenistão, já gravada no primeiro disco e revisitada agora: um "cluster" (notas vizinhas sobrepostas) da voz com os saxofones, os três unidos num corpo só. Um outro som. Emblema mínimo do que a Orquestra pode ser.
Outros dois exemplos, escolhidos de uma profusão. 1) "Blackbird" (Lennon/McCartney), transformado em congado, na inspiração insólita do percussionista Ari Colares. Mas não fica esquisito, com a letra em inglês? Mônica não canta a letra, só a melodia. Virou ela mesma o grande e lindo pássaro da música. 2) "O Circo Invisível de Fellini", do flautista/saxofonista Mané Silveira, com sua cena falada de caos (aludindo ao "Ensaio de Orquestra"?), depois os ritmos caribenhos de bar de hotel à la "Oito e Meio", depois seresta e baião, até chegar em "Amarcord", com direito até ao vento (cortesia do flautista Teco Cardoso).
Falando nele: que prazer ouvir Teco tocar. Fez improvisos lindos no sax soprano e na flauta, e foi mais ou menos o "spalla" da orquestra, especialmente na sua "Jabaculê no Jabour", animada homenagem a Hermeto Pascoal. A própria imagem da simpatia, gingando dentro e fora da música.
Uma resenha honesta deveria falar dos mestres Guello e Caíto Marcondes, percussionando lá atrás, com Zezinho Pitoco; do bandolinista Ronem Altman e do violoncelista Dimos Gouradoulis, do contrabaixista Sylvio Mazzuca Jr. e do acordeonista Lulinha Alencar. Essa faz o que pode para não trair o que se ouviu, mas é curta demais para tanto.
Comentando seu arranjo de "Correnteza" (Tom Jobim e Luís Bonfá), Taubkin falou do "mundo bonito" -aquele mundo salvável, a que Orquestra Popular de Câmara está, desde sempre, votada. Uma espécie de consciência ecológica da música, combinada ao humanismo de uma arte sem alfândega, confere ao trabalho da Orquestra seu caráter mais cosmopolita e mais forte. Se isso também bloqueia a expressão de outros planos do afeto, se contradições e misérias parecem não existir para eles, isso não deixa de ser outra bela profissão de fé.
Não é fácil, afinal, definir o registro dessa música. Existe um afeto sem nome, que os músicos conhecem bem, e que nos leva para além das meras paixões. Não tem nome, mas um adjetivo possível para ele é "musical". Foi de lá, quem sabe, do fundo dessa emoção quase impessoal, que a Orquestra encontrou reservas de sentido. E é para lá, sobrevoando toda contingência, que a gente vai agora, que a gente sempre quer ir, seguindo o pássaro preto da música, correnteza abaixo.


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