São Paulo, terça-feira, 15 de junho de 2004

Próximo Texto | Índice

ERUDITO/CRÍTICA

Orquestra Experimental de Repertório estréia montagem de "Romeu e Julieta", regida por Jamil Maluf

Amor e humor no limite de sua própria graça

Jefferson Coppola/Folha Imagem
Ensaio da ópera "Romeu e Julieta", com direção cênica de José Possi Neto, que é apresentada hoje, às 20h, no Teatro Municipal


ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

"A luz inebriante do amor": acreditar ou não numa frase como essa, extraída de uma das árias do quarto ato de "Romeu e Julieta", define hoje, não o destino da arte de Charles Gounod (1818-93), mas talvez o de quem ouve.
Encenada em tons caracteristicamente irônicos por José Possi Neto e regida com característica energia por Jamil Maluf, com um elenco caracteristicamente espetacular no palco, a ópera teve sua estréia domingo no Teatro Municipal, dividindo as paixões no centro da cidade com as dezenas de espetaculares romeus e julietas que mandavam ver a duas quadras dali, na parada gay.
A questão, no fundo, não é acreditar na frase, mas na forma da frase. O próprio compositor deixava isso claro nas suas "Reminiscências": "Que ninguém mais venha nos jogar na cara esses termos barulhentos e equivocados -"naturalismo", "realismo" etc. A Arte é Natureza, sim [...], mas ponderada e julgada na corte da razão". Traduzindo em música: a simetria continua sendo a grande arma da beleza. Por mais descabelado que seja o sentimento, nada altera o equilíbrio das formas.
Não é o mesmo equilíbrio que rege essa produção da Orquestra Experimental de Repertório? Seu símbolo mais memorável é a grande lua, um inconstante grande círculo iluminado que manda no fundo do palco, como manda no destino dos amantes. Também a capelinha matrimonial acolhe os adolescentes com equânimes braços de arame, o que talvez sirva como metáfora da música. Dessa perspectiva, o grande mérito de Possi Neto -auxiliado pelo cenógrafo Jean-Pierre Tortil e pelo figurinista Fábio Namatame- foi liberar o repertório de referências, combinando alegremente renascença e pós-moderno. Está tudo sob controle: dá para fugir do controle.
O "Romeu e Julieta" original de Shakespeare tem mesmo boa dose de comédia; fica a um passo de "Sonho de uma Noite de Verão". Outra virtude dessa montagem, então, é não forçar a mão da tragédia, até o ponto em que as coisas realmente desandam. Se isso tira alguma expressão do casal 20, Rosana Lamosa e Fernando Portari, por outro lado garante o ritmo do espetáculo.
Outros solistas, como o barítono Paulo Szot (fazendo um Mercutio punk), o baixo Lício Bruno (Capuleto, bebendo seu uisquinho de manhã enquanto fala ao celular) e a mezzo Magda Painno (a ama, em versão MTV), têm bastante espaço para o humor. Mesmo o Tybalt de Luciano Botelho (à frente da gangue dos Capuletos), o frei de José Galliza (de batina de couro) e o Stéphano de Liz Nardoto (fazendo serenata com guitarra, contra os arranha-céus projetados em preto-e-branco) têm sua dose de comédia, lucidamente misturada aos venenos trágicos. Idem, Coral Lírico, até no glorioso lamento, com as luxuosas dissonâncias lutuosas.
Mesmo nessa tarde de estréia, em que o controle falou mais alto do que a liberdade e alguém se esqueceu de pôr filtro mágico na água dos artistas, a montagem foi um prazer de ver. Até um garoto que rolava no chão do corredor não tirava os olhos de Julieta morrendo e cantando. Pouco mais tarde, a duas quadras dali, natureza e arte se confundiam num carnaval de inverno, e a lembrança da ópera já começava a ganhar contornos de beleza ponderada e clássica.


Romeu e Julieta
   
Quando: hoje, qui., sáb. e dia 21, às 20h
Onde: Teatro Municipal (pça. Ramos de Azevedo, s/nš, centro, tel. 222-8698)
Quanto: de R$ 30 a R$ 100



Próximo Texto: Panorâmica - Cinema: CCBB promove debate sobre a Boca do Lixo
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.