|
Próximo Texto | Índice
Crítica
Ficar pelado não é sinônimo de boa performance artística
Mostra traz recorte potente do gênero, mas perde com nudez em trabalhos fracos
Bruno Fernandes/Folha Imagem
|
|
Coreografia com saliva e roupa íntima dos bailarinos da companhia francesa Les Gens d'Uterpan, que participou da última Verbo
SILAS MARTÍ
DA REPORTAGEM LOCAL
A nudez ofuscou o que
havia de bom na última
Verbo, festival de performances da galeria Vermelho
encerrado no último domingo.
Não que o corpo tenha perdido
o apelo, ainda mais no frio do
inverno paulistano. Mas o que
se viu, a despeito de obras mais
bem acabadas de gente vestida,
foi um espetáculo pueril.
Logo no primeiro dia, o português Gabriel Arantes já tinha
garotas pintadas de índio com
os seios à mostra. Mais constrangedor e um tanto datado,
Marco Paulo Rolla levou um rapaz e outra mulher para quebrar taças -todos nus- num
dos ambientes da galeria.
Foi dura a espera. Além de
desviar dos estilhaços de vidro,
o público, que foi minguando
ao longo da performance, não
respondeu às taças quebradas.
Numa espécie de clímax não
planejado, um dos meninos
cortou o dedo num caco de vidro e concluiu o trabalho manchando de sangue os restos
transparentes -devia vibrar de
emoção com o acaso sofrido.
Dias depois, o holandês Anno
Dijkstra esperou a sala lotar para então tirar toda a roupa.
Amarrou um aparato no peito
que simulava um tiro de revólver. No lugar do sangue cenográfico, um líquido dourado. Na
hora em que levaria o disparo
fajuto, algo deu errado. Virou
então de costas para a plateia,
rearmou o disparador e manchou de ouro o piso da galeria.
Era sua reinterpretação da
performance "Shoot", de Chris
Burden, em que o artista norte-americano, em plena Guerra do
Vietnã, levou um tiro de verdade no braço -estava vestido.
Tédio e êxtase
Nua, Ana Montenegro encarou por meia hora uma plateia
entediada. Era essa a performance: uma mulher pelada. No
mesmo dia, Rose Akras ficou só
de calcinha e pintou o corpo todo de preto, num trabalho em
que evocava o êxtase das santas
esculpidas pelo barroco italiano Gian Lorenzo Bernini.
Os bailarinos da companhia
francesa Les Gens d'Uterpan
também tiveram seu momento
à vontade. De cueca e calcinha,
babaram uns sobre os outros
em poses contorcionistas que
armaram pela galeria.
É verdade que a nudez, nesse
caso, estava de acordo com o
objetivo. Mas cansou a repetição, a certeza quase absoluta de
que performance, no imaginário de boa parte dos escolhidos
para esta Verbo, ainda é sinônimo de ficar pelado e fazer alguma coisa, qualquer coisa.
Vertente sonora
Funcionou, por outro lado, a
vertente sonora desta edição.
Se babando o Les Gens d'Uterpan conseguiu um impacto médio, o olhar fixo que jogava sobre os visitantes valeu mais,
adensado pelos graves potentes
de caixas de som espalhadas
pela galeria. O mesmo valeu para Maurício Ianês, que fez reverberar pelo espaço uma sinfonia orgânica distorcida.
Daniel Fagundes, que no ano
passado tentou enfiar mais de
dez pessoas peladas num Fusca, orquestrou um concerto de
buzinas com vários carros estacionados no pátio da galeria.
Perdeu o ritmo, mas ganhou
com a fusão de sua algazarra
aos rojões do Pacaembu vizinho em noite de clássico.
Riso e choro
Vestidos, os espanhóis da dupla Los Torreznos transformaram a língua em instrumento
abstrato em duas performances irretocáveis. Gritando "la
cultura" à exaustão e, no dia seguinte, "el dinero", protagonizaram o momento mais que
saudável em que a arte desceu
do pedestal e riu de si mesma.
Mais para o choro, a turca
Nezaket Ekici se pendurou do
teto de ponta-cabeça e leu notas de agressão contra mulheres. Vestia uma burca. Não é
preciso dizer que, nesse contexto, foi mais transgressora do
que as várias peladas que desfilaram pelas salas da Vermelho.
A Verbo fechou ao som de
uma canção triste em fita cassete, que o colombiano Ícaro
Zorbar fez tocar com um mecanismo instalado num ventilador. Rolava a música e a fita
magnética se desenrolava no
vento em desenhos no ar -promessa sólida de que restam novos rumos para a performance.
Próximo Texto: Festival em BH terá mais de 60 obras Índice
|