São Paulo, segunda-feira, 16 de abril de 2007

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Crítica/cinema/"Maria"

Profecia de Abel Ferrara encontra dúvida, negação e desespero na fé

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Dentro de "Maria", há vários filmes. O primeiro deles é sobre Maria Madalena (Juliette Binoche), suas relações com o Cristo e, secundariamente, os demais discípulos. O segundo é sobre a atriz Marie Palesi, que interpreta Maria Madalena e que, terminada a filmagem, não consegue separar-se do seu personagem e passa a viver em Jerusalém, à procura de Cristo, ou de si mesma, ou de ambos.
Existe ainda um terceiro filme, que diz respeito à mídia. Ele é representado por um programa de TV onde Ted Younger (Forrest Whitaker), arguto entrevistador, conversa com personalidades sobre vida, morte e santidade de Cristo. Trata-se, nos vários filmes e níveis propostos, de observar a morte e a ressurreição de Cristo (isto é, os sinais de sua santidade), suas repercussões e decorrências, não apenas sobre as civilizações e crenças envolvidas, mas sobre cada um em particular.
É preciso dizer, desde logo, que cada filme feito sobre Jesus Cristo é uma reinterpretação de sua existência terrena. As mais recentes foram polêmicas. Martin Scorsese fixou-se nos tormentos existenciais de um Deus terreno, capaz de ser tentado não mais pelo demônio, mas por ser a divindade tornada carne. Mel Gibson, com mais simplicidade, observou os suplícios físicos que vitimaram Jesus, como se buscasse demonstrar a indignidade do homem, sua incapacidade para reconhecer o Deus encarnado.
Se Gibson está mais preocupado em partilhar sua culpa pelo destino de Cristo, Abel Ferrara ocupa-se em partilhar o próprio desespero, que diz respeito à religião, mas não só a ela. A passagem de Cristo pela Terra é um mistério, pois trata-se de um Deus feito homem. De um homem que representa Deus ao mesmo tempo em que é também Deus.
Ora, os atores são, em certa medida, isso. Não são deuses, claro, mas representam outras pessoas, encarnam personagens. No caso de Marie Palesi, o mistério se instaura: ela não consegue mais abandonar seu personagem. Da mesma forma, diretores de cinema buscam a verdade dos personagens que imaginam. Alguns o fazem desesperadamente.
Ted Younger, o apresentador, a horas tantas fará a Tony (Matthew Modine), o diretor do filme dentro do filme (e que também interpreta Jesus), a pergunta fatal: "Você já foi crucificado?". Sim, porque para Younger não se toca em certos assuntos gratuitamente.
Por aí já se vê, se não aonde Abel Ferrara quer chegar, ao menos de onde ele parte: a fé não é uma coisa dada, evidente. Sua experiência convive com a dúvida, a negação e o desespero. Essa pode até não ser a fé da maior parte dos homens, inclusive porque as igrejas costumam censurar a dúvida (que dirá a negação e o desespero).
Mas é a de Abel Ferrara. No tempo da Inquisição, talvez fosse queimado. Estamos, por sorte, longe disso. Ferrara pode, em todo caso, professar sua fé desesperada na possibilidade de encontrar uma imagem que corresponda à perfeição e preencha em todos os detalhes a verdade daquilo (ou daquele) que busca representar. A fé em Deus e a fé na imagem são, afinal, a mesma.


MARIA
Produção:
Itália/França/EUA, 2005
Direção: Abel Ferrara
Com: Juliette Binoche, Forest Whitaker e Healther Graham
Onde: em cartaz nos cines Frei Caneca Unibanco Arteplex e Cine Bombril
Avaliação: bom


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