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Crítica/cinema/"Maria"
Profecia de Abel Ferrara encontra dúvida, negação e desespero na fé
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Dentro de "Maria", há
vários filmes. O primeiro deles é sobre
Maria Madalena (Juliette Binoche), suas relações com o
Cristo e, secundariamente, os
demais discípulos. O segundo é
sobre a atriz Marie Palesi, que
interpreta Maria Madalena e
que, terminada a filmagem, não
consegue separar-se do seu
personagem e passa a viver em
Jerusalém, à procura de Cristo,
ou de si mesma, ou de ambos.
Existe ainda um terceiro filme, que diz respeito à mídia.
Ele é representado por um programa de TV onde Ted Younger
(Forrest Whitaker), arguto entrevistador, conversa com personalidades sobre vida, morte e
santidade de Cristo. Trata-se,
nos vários filmes e níveis propostos, de observar a morte e a
ressurreição de Cristo (isto é,
os sinais de sua santidade), suas
repercussões e decorrências,
não apenas sobre as civilizações e crenças envolvidas, mas
sobre cada um em particular.
É preciso dizer, desde logo,
que cada filme feito sobre Jesus
Cristo é uma reinterpretação
de sua existência terrena. As
mais recentes foram polêmicas. Martin Scorsese fixou-se
nos tormentos existenciais de
um Deus terreno, capaz de ser
tentado não mais pelo demônio, mas por ser a divindade
tornada carne. Mel Gibson,
com mais simplicidade, observou os suplícios físicos que vitimaram Jesus, como se buscasse demonstrar a indignidade do homem, sua incapacidade para
reconhecer o Deus encarnado.
Se Gibson está mais preocupado em partilhar sua culpa pelo destino de Cristo, Abel Ferrara ocupa-se em partilhar o próprio desespero, que diz respeito à religião, mas não só a
ela. A passagem de Cristo pela
Terra é um mistério, pois trata-se de um Deus feito homem. De
um homem que representa
Deus ao mesmo tempo em que
é também Deus.
Ora, os atores são, em certa
medida, isso. Não são deuses,
claro, mas representam outras
pessoas, encarnam personagens. No caso de Marie Palesi, o
mistério se instaura: ela não
consegue mais abandonar seu
personagem. Da mesma forma,
diretores de cinema buscam a
verdade dos personagens que
imaginam. Alguns o fazem desesperadamente.
Ted Younger, o apresentador, a horas tantas fará a Tony
(Matthew Modine), o diretor
do filme dentro do filme (e que
também interpreta Jesus), a
pergunta fatal: "Você já foi crucificado?". Sim, porque para
Younger não se toca em certos
assuntos gratuitamente.
Por aí já se vê, se não aonde
Abel Ferrara quer chegar, ao
menos de onde ele parte: a fé
não é uma coisa dada, evidente.
Sua experiência convive com a
dúvida, a negação e o desespero. Essa pode até não ser a fé da
maior parte dos homens, inclusive porque as igrejas costumam censurar a dúvida (que dirá a negação e o desespero).
Mas é a de Abel Ferrara. No
tempo da Inquisição, talvez
fosse queimado. Estamos, por
sorte, longe disso. Ferrara pode, em todo caso, professar sua
fé desesperada na possibilidade
de encontrar uma imagem que
corresponda à perfeição e
preencha em todos os detalhes
a verdade daquilo (ou daquele)
que busca representar. A fé em
Deus e a fé na imagem são, afinal, a mesma.
MARIA
Produção: Itália/França/EUA, 2005
Direção: Abel Ferrara
Com: Juliette Binoche, Forest Whitaker e Healther Graham
Onde: em cartaz nos cines Frei Caneca
Unibanco Arteplex e Cine Bombril
Avaliação: bom
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