São Paulo, quarta-feira, 16 de maio de 2007

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crítica

Anderszewski renova uma história do piano

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

O mundo num grão de areia, o universo numa casca de noz, ou seja qual for a imagem: é a experiência total da música, em 33 variações a partir de uma valsa simples. Compostas por Beethoven (1770-1827) sobre um tema proposto pelo editor Diabelli, as "Variações op. 120" são, possivelmente, a maior de todas as suas obras para piano. Receberam uma interpretação corajosa e incomum de Piotr Anderszewski, anteontem, no Cultura Artística.
Quase ninguém toca as "Variações Diabelli", muito menos ao vivo. São 60 minutos de música, passando pelos humores mais diversos e exigindo virtuosismos de toda ordem, além de uma capacidade suprema de concentração. O estilo tardio de Beethoven tem ali sua manifestação consumada: uma arte em que tudo se cria e tudo se transforma, com base nos elementos mais simples.
O modo de Anderszewski ter tocado a "Suíte Inglesa nš 6" de Bach (1685-1750), na primeira parte do concerto, já dava a medida do que vinha. Mal atacou o "Prelúdio" e a platéia foi tragada para dentro de outro tempo, uma ordem musical serena, que impunha silêncio e atenção. Quase sem pedal, articulando tudo com cristalina clareza, o polonês fez um Bach sobriamente sensual, ou sensualmente austero, se vale o paradoxo. Um Bach forte e essencial, que só deixou perceber outras potências do piano na giga, já anunciando o Beethoven.
Nas entrelinhas, depois, ficava a homenagem de Beethoven a seu modelo, as "Variações Goldberg" de Bach. Tanto mais que Anderszewski manteve o estilo ao mesmo tempo rigoroso e desprendido, como seu paletó com camiseta, só que no tamanho certo e nas co- res ideais.
Exemplo de seqüência controladamente variada: as tonitroantes oitavas na mão esquerda, na variação 7, em contraste com os mistérios chopinianos na 8, seguidos de uma variação 9 cuja reprise elevava surpreendentemente a dinâmica, preparando os fogos de artifício lisztianos da 10, para encerrar um primeiro bloco musical.
Nas últimas sonatas de Beethoven, fica aparente seu interesse por formas "abertas", livres da dialética de temas e tonalidades característica do modelo clássico. A variação é uma forma livre, porque pode se multiplicar ao infinito; e não é menos que isso o que se quer.
Um infinito natural, com direito até a "seção áurea", que se encontra em tantas formas da natureza (como conchas e ondas) e que se repete aqui nas divisões da grande forma. A famosa variação 20 define uma proporção -34:21/ 21:13- que se espelha na quebra entre as variações 28 e 29, dividindo as últimas 13 (13:8/ 8:5). São coisas que só a análise revela, mas qualquer um sentiria, atento às artes do pianista.
Assim como sentiria também as presenças de Schumann (na variação 30), ou Handel (na grande fuga dupla da 32). Toda uma história do piano se resume nessas "Variações Diabelli". É uma história infinita, que se repete e se renova nas mãos de Piotr Anderszewski.


AVALIAÇÃO: ótimo

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