São Paulo, sábado, 16 de outubro de 2004

Próximo Texto | Índice

TEATRO

Em "Transex", no Espaço dos Satyros, Rodolfo García Vázquez assume riscos com realismo rasteiro e humor infantil

Diretor explora kitsch para destacar solidão

DO CRÍTICO DA FOLHA

A praça Roosevelt é onde os extremos se encontram, o precário e o refinado, o deboche e a delicadeza, travestis e intelectuais. Dea Loher, que se destaca entre a última geração da dramaturgia alemã, fez da praça seu ponto de referência para entender o Brasil, no lisérgico "A Vida na Praça Roosevelt", que passou como um relâmpago no fim do mês passado pelo Sesc Anchieta.
Em um austero cubo branco, com alta tecnologia e uma marcação milimétrica, um fabricante de armas em crise se apaixona por uma desempregada de bingo, um policial procura seu filho traficante, um travesti declara seu amor por um extraterrestre.
A paixão e a alta técnica dos atores do Thalia Theater, frutos de uma Alemanha que preza e financia seus criadores, chega a dar perplexidade no público paulista: é mesmo da nossa praça Roosevelt velha de guerra que eles estão falando? A que devemos toda essa honra?
A perplexidade aumenta quando sabemos que esse realismo fantástico de um país inviável, que deve soar fabuloso nos palcos da Europa, é moeda corrente da praça. Bibi, a travesti amante intergalática não só existe mesmo como está em cartaz na matriz, o Espaço dos Satyros, contando sua própria história no espetáculo "Transex".
Em torno de Phedra de Córdoba, primeira-dama desse universo de simulacros e paixões, a peça mergulha sem medo no escracho e no kistch para resgatar a dignidade e a solidão. O texto de Rodolfo García Vázquez, que também dirige a montagem, assume todos os riscos, na ambigüidade entre o paródico e o dramático, numa narrativa linear que esbarra no inverossímil e no arbitrário a cada passo (sobretudo no desfecho imprevisto, uma espécie de Deus ex machina ao contrário), estruturando-se em uma estética de chanchada.
Assim, em meio a um realismo rasteiro, atores vêm até a beira da cena e, após uma dublagem característica dos shows de travesti, expõem sua alma. O efeito é vigoroso quando a atuação consegue revelar a angústia e a solidão por trás do simulacro, como em boas cenas de Ivam Cabral e no personagem de Alberto Guzik, uma intelectual que se transforma em homem por amor a Botticelli, um desafio que é enfrentado com surpreendente delicadeza. É preciso destacar também a atuação firme de Laerte Késsimos, em um personagem mais convencional.
Mas a dor do precário é anestesiada por um humor quase infantil, entre o auto-indulgente e o autodepreciativo. Sem o distanciamento gringo, é como se houvesse uma vergonha em ser desmascarado no patético: o grotesco ofusca o sublime e a angústia se dilui em cacos e exibicionismos.
Sem o endosso de uma política cultural que vá além da esmola esporádica, é como se o ator brasileiro tivesse de pedir desculpas por não ser alemão.
(SERGIO SALVIA COELHO)


Transex
  
Texto e direção: Rodolfo García Vázquez
Com: Ivam Cabral, Soraya Saide, Alberto Guzik e outros
Onde: Espaço dos Satyros (pça. Franklin Roosevelt, 214, República, tel. 3258-6345)
Quando: de qui. a sáb., às 21h30; e dom., às 20h30; até 19/12
Quanto: R$ 10



Próximo Texto: "Quarto 77": Casal busca a si mesmo em quarto
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.