São Paulo, terça-feira, 17 de fevereiro de 2004

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MODA

Sem dinheiro, marcas mais conceituais saem de cena e dão lugar à "nova vanguarda" financiada por grandes grupos

Independentes perdem espaço no cenário

Pierre Verdy/France Presse
Modelo mostra criação do estilista inglês John Galliano para a marca Christian Dior, em Paris, durante temporada de desfiles primavera-verão de alta costura, apresentada em janeiro de 2003


VANESSA FRIEDMAN
DO "FINANCIAL TIMES"

O que eu mais me lembro de minhas primeiras experiências com as semanas de moda, ainda em meados de 1990, são os estacionamentos, onde havia comentários sobre o que era mais recente ou os cochichos de editor para editor sobre os novos estilistas.
Lembro-me de ficar congelada diante de estacionamentos de Paris, Londres ou Nova York, uma hora e meia depois que os desfiles haviam começado, porque os assistentes do estilista ainda não nos tinham deixado entrar ou, dentro deles, sem aquecimento, sentada sobre bancos de madeira que deixavam lascas presas em nossa roupas. Sentir-me emocionada e instigada em estacionamentos, ao assistir a um desfile verdadeiramente original, era algo que fazia todo o esforço valer a pena.
Foram dentro de estacionamentos que aconteceram o desfile aerodinâmico de Hussein Chalayan -da mulher como tecnologia, com vestidos que se moviam num balé tecno todo próprio-, e o desfile "Violação, Fogo e Chuva nas Highlands", de Alexander McQueen.
Houve os desfiles de estréia dos belgas Véronique Branquinho e Olivier Theyskens, com suas visões românticas e góticas.
Então, de repente, deixaram de sê-lo. A virada do século aconteceu, e, de repente, os estacionamentos e tudo o que eles tinham passado a representar -novos que "não valem a pena".
"Por que deveríamos vê-los se eles nem sequer conseguem produzir?", diziam os varejistas. "Por que deveríamos ver ainda mais roupinhas pretas mínimas que nem sequer são anunciadas?", comentavam os editores. Houve uma época em que, se você não conseguisse um ingresso para um desfile muito badalado, tentava entrar por baixo do pano; hoje em dia, quem não consegue ingresso dá de ombros e vai fazer compras no shopping.
Hoje em dia, metade dos estilistas que exibiam suas criações nesses desfiles acabou se bandeando para o "mainstream". McQueen foi para Paris com o grupo Gucci, e os inspetores de incêndio franceses apagaram o fogo de suas extravagâncias. Theyskens fechou sua grife própria e foi fazer vestidos de coquetel para a Rochas. Muitos dos outros estilistas jovens desapareceram.
Em 2001 o museu Victoria & Albert promoveu uma mostra chamada "Radical Fashion", destacando o trabalho de 11 estilistas promissores. É interessante observar o que aconteceu com a maioria deles com o passar dos anos. Azzedine Alaia deixou de exibir seu trabalho na programação oficial e Gaultier hoje se dedica a desenhar roupas para o reduto do tradicionalismo que representa a marca Hermès.
A exemplo de seus colegas, Helmut Lang virou propriedade do grupo Prada, e Steve McQueen, da Gucci. Martin Margiela decidiu investir em marca e lançou uma grife clássica de luxo chamada 6. Issey Miyake se aposentou das passarelas para dedicar-se às suas pesquisas com tecidos. Vivienne Westwood tem feito retrospectivas dela mesma enquanto o japonês Yohji Yamamoto tem investido na sua grife Ys, com preços mais acessíveis.
A conclusão parece ser mais que evidente: a moda radical, de vanguarda ou conceitual -são todos termos usados geralmente para descrever a mesma coisa, ou seja, roupas que transgridem, que vão além dos limites - saiu de moda. Em outras palavras, essa moda desapareceu.
"O dinheiro acabou com a vanguarda", diz Maria Luisa Poumaillou, uma das grandes patronesses da vanguarda varejista no mundo e proprietária de um grupo de butiques em Paris que leva seu nome. "Os grandes grupos têm tanto poder que nenhum estilista isolado, por mais talentoso que seja, pode aventurar-se por conta própria. Eu, como varejista, sinto que, por mais bela que seja uma criação, não tenho como promovê-la porque nunca a verei na imprensa -só verei Tom Ford isso ou Gucci aquilo", desabafa Poumaillou.
"De que adianta criar roupas legais que ninguém vê?", pergunta o belga Dirk Bikkembergs, que tem interesse pessoal no assunto. "Como se pode lutar contra a Gucci ou a Prada?", pergunta.
"Acho que cheguei no momento em que uma coisa boa se aproximava do fim", comenta Hamish Morrow, o estilista britânico que explora a relação entre tecnologia e elegância e que fez seu primeiro desfile em Londres em 2000. Essa "coisa boa" foi o final dos anos 1990, uma época em que o público e o varejo aderiram em cheio à idéia de investir em moda.
Atribuir a culpa de tudo a 11 de Setembro é clichê, mas não há dúvida de que a economia do mundo pós-Torres Gêmeas prejudicou sobretudo os estilistas menores, mais individuais, mais idiossincráticos.
De acordo com Poumaillou, "se você é um estilista de vanguarda, nenhuma loja vai se arriscar muito apostando em você, porque o público não está comprando. Desse modo, nenhum fabricante vai querer trabalhar com você, porque não ganhará o suficiente".
"Os clientes agora têm essa opção de Zara e da H&M, então eles não compreendem por que deveriam pagar tanto, quanto podem conseguir o que procuram por tão pouco", opina Bikkembergs.
"O cliente procura alguma coisa que tenha alma", diz Branquinho. O interessante desses termos -"alma", "emoção" e "indivíduo"- é que, embora não soem como palavras de vanguarda (para a qual parecem mais apropriadas palavras como "preto", "raiva" e "desfiado"), quando contrapostas às últimas tendências de longo prazo da moda, como o esporte urbano e a sexualidade agressiva, eles acabam soando espantosos. Como diz Olivier Theyskens, "hoje acho mais subversivo fazer um vestido bonitinho do que uma mortalha".
"Talvez esta seja um novo tipo de vanguarda", conclui Poumaillou, "toda essa elegância e esses acabamentos de alta costura que estamos vendo". A vanguarda então não terá desaparecido -ela estaria apenas renascendo sob forma nova, romântica, pouco evidente, e seria apenas nossa interpretação antiga do termo que teria sido, literalmente, retalhada e queimada até morrer, mais ou menos como se fazia com as roupas em certa época.
Se for assim, flores em tons pastéis talvez sejam a forma futura da vanguarda. Soa estranho, mas não é sempre assim?

Tradução de Clara Allain

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