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São Paulo, quinta-feira, 17 de abril de 2003

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CINEMA/CRÍTICA

Dimensão trágico-religiosa dada a personagens e seu universo por imagem e som elevam o longa

"Carandiru" é pesadelo e caricatura do país

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

Uma das inúmeras abordagens suscitadas por "Carandiru" é a da sobreposição, na textura do filme, de duas dimensões: a social e outra que podemos chamar de religiosa ou moral.
No primeiro caso, trata-se de mostrar o que o presídio tem de microcosmo do país. Tudo o que existe fora dele -o trabalho, o comércio, a religião, o lazer, o sexo, o crime- existe dentro, só que de modo condensado e deslocado.
Por força disso, o Carandiru é como um pesadelo sobre o país, ou, antes, uma caricatura.
Duas sequências são exemplares dessa idéia: a do jogo de futebol e a do casamento entre Sem Chance (Gero Camilo) e o travesti Lady Di (Rodrigo Santoro).
Em torno de um campo enlameado, presos maltrapilhos e solenes entoam o hino nacional, numa pungente paródia de uma partida de seleção brasileira.
Igualmente paródico é o casamento homossexual, com a noiva de véu e grinalda, o noivo de terno, "madrinhas" chorando etc.
Assim como o travesti é uma caricatura da mulher, por acentuar exageradamente seus traços femininos, as relações humanas na cadeia exacerbam, analogamente, a luta selvagem que caracteriza a vida fora das grades.
Mas o que eleva o filme a um plano mais inquietante e irredutível é a dimensão trágico-religiosa conferida aos personagens e seu universo por um cuidadoso trabalho de imagem e som.
Proliferam os signos, de raiz judaico-cristã, de martírio e redenção, luz e trevas, dúvida e culpa. Um exemplo entre muitos é o da escada lavada primeiro pela água, depois pelo fogo, depois pelo sangue e novamente pela água.
Água e fogo são centrais em "Carandiru". Basta pensar na história das duas mulheres de Majestade, ligadas pelo fogo, ou na relação entre Zico e Deusdete, marcada pela água.
O recurso frequente à contraluz é um modo de sublinhar, por um lado, o contraste entre o dentro e o fora do cárcere, e, por outro, a estreita linha de claridade que separa cada indivíduo das trevas. É o magistral trabalho com a luz que unifica as duas faces de "Carandiru", a social e a outra, difícil de nomear.


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