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MÚSICA/CRÍTICA
Saudade da "Saudade da Saudade" de Zé Miguel Wisnik
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Uma vez é pouco. Duas é pouco. Nem três bastam para se
começar a dar conta desse acervo
impressionante de canções de Zé
Miguel Wisnik. Gravadas pela
cantora carioca Eveline Hecker,
num registro de intimidade leve
que é a própria alma sonhadora
das vozes do Rio, o disco reúne 15
músicas, com fino senso de narrativa. A "Ponte Aérea" do título,
desde logo, responde ao "São
Paulo Rio" (2001) do próprio
compositor e nos dá um modelo
de saudade e descoberta que vai
longe no entendimento da arte de
Zé Miguel.
Antiga vocalista de Tom Jobim,
depois de Beth Carvalho, Eveline
Hecker habita o cosmos da deusa
Nara, que segue espalhando suas
bênçãos. Em seus melhores momentos, concretiza um ideal de
canto amistoso, quase privado,
que esconde seus esmeros com
delicadeza.
Há nisso, paradoxalmente, um
risco de distanciamento. Mas já
não está na música? A "expressão
mais simples" invocada por Zé
Miguel desde seu primeiro disco
(1993) nunca será simples para
ele, nem para ela. E só tem a ganhar na companhia de músicos
como os violonistas Luiz Brasil e
Maurício Carrilho, o violoncelista
Jaques Morelenbaum e o contrabaixista Zeca Assumpção, entre
outros mestres da sutileza.
"Uma vez amanheceu/ Meu pai
mostrou o céu/ Onde nasceu redondo o sol": o poeta que escreve
esses versos vive na busca da experiência, perdida e ganha a cada
canção. Um amoroso "recomeço
sem ter fim" descrito também por
seu parceiro Paulo Neves (esplêndido recôndito letrista porto-alegrense). Não por acaso a saudade
é um de seus temas, e fixa o arco
do disco: de "Ponte Aérea" a
"Saudade da Saudade".
O já consagrado "Assum Branco" (gravado por Zé Miguel e Caetano Veloso em "Pérolas aos Poucos", de 2003) nos faz compreender o quanto dessa nostalgia será
dominada com potências da própria música. Não é verdade que
agora a gente lembra de "Assum
Branco" sempre que escuta "Assum Preto"? Cada música recorta
de outro jeito seu caminho, descendo a ladeira da memória para
depois subir mais livre. A ladeira
pode até ser dos infernos, como
em "Orfeu" e "Viúvo". Mas de lá,
incrivelmente, vem a música.
Com tanto peso nas costas, ainda bem que existe "Comida e Bebida" (com Zé Celso Martinez
Corrêa), gravada por Elza Soares e
regravada agora por Eveline Hecker, do modo mais wisnikiano:
depois.
Fazer disso uma alegria é uma
sabedoria. E a sabedoria alegre de
Zé Miguel nos ensina a escutar esses delírios com serenidade. Seja
porque são a própria seiva da árvore da música, seja por outro
sentido, mais específico.
O que um disco como esse comprova é o quanto sua música já se
transformou naquela arte que
não tem mais dono, virou patrimônio comum. Ela sente e não
sente saudade. Porque nossa saudade maior, nesse ponto, é pela
própria música de Zé Miguel Wisnik, que a voz de Eveline sacia até
a próxima vez.
Ponte Aérea
Artista: Eveline Hecker
Lançamento: Biscoito Fino
Quanto: R$ 20
(www.biscoitofino.com.br)
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