São Paulo, quarta-feira, 18 de fevereiro de 2004

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MÚSICA/CRÍTICA

Saudade da "Saudade da Saudade" de Zé Miguel Wisnik

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Uma vez é pouco. Duas é pouco. Nem três bastam para se começar a dar conta desse acervo impressionante de canções de Zé Miguel Wisnik. Gravadas pela cantora carioca Eveline Hecker, num registro de intimidade leve que é a própria alma sonhadora das vozes do Rio, o disco reúne 15 músicas, com fino senso de narrativa. A "Ponte Aérea" do título, desde logo, responde ao "São Paulo Rio" (2001) do próprio compositor e nos dá um modelo de saudade e descoberta que vai longe no entendimento da arte de Zé Miguel.
Antiga vocalista de Tom Jobim, depois de Beth Carvalho, Eveline Hecker habita o cosmos da deusa Nara, que segue espalhando suas bênçãos. Em seus melhores momentos, concretiza um ideal de canto amistoso, quase privado, que esconde seus esmeros com delicadeza.
Há nisso, paradoxalmente, um risco de distanciamento. Mas já não está na música? A "expressão mais simples" invocada por Zé Miguel desde seu primeiro disco (1993) nunca será simples para ele, nem para ela. E só tem a ganhar na companhia de músicos como os violonistas Luiz Brasil e Maurício Carrilho, o violoncelista Jaques Morelenbaum e o contrabaixista Zeca Assumpção, entre outros mestres da sutileza.
"Uma vez amanheceu/ Meu pai mostrou o céu/ Onde nasceu redondo o sol": o poeta que escreve esses versos vive na busca da experiência, perdida e ganha a cada canção. Um amoroso "recomeço sem ter fim" descrito também por seu parceiro Paulo Neves (esplêndido recôndito letrista porto-alegrense). Não por acaso a saudade é um de seus temas, e fixa o arco do disco: de "Ponte Aérea" a "Saudade da Saudade".
O já consagrado "Assum Branco" (gravado por Zé Miguel e Caetano Veloso em "Pérolas aos Poucos", de 2003) nos faz compreender o quanto dessa nostalgia será dominada com potências da própria música. Não é verdade que agora a gente lembra de "Assum Branco" sempre que escuta "Assum Preto"? Cada música recorta de outro jeito seu caminho, descendo a ladeira da memória para depois subir mais livre. A ladeira pode até ser dos infernos, como em "Orfeu" e "Viúvo". Mas de lá, incrivelmente, vem a música.
Com tanto peso nas costas, ainda bem que existe "Comida e Bebida" (com Zé Celso Martinez Corrêa), gravada por Elza Soares e regravada agora por Eveline Hecker, do modo mais wisnikiano: depois.
Fazer disso uma alegria é uma sabedoria. E a sabedoria alegre de Zé Miguel nos ensina a escutar esses delírios com serenidade. Seja porque são a própria seiva da árvore da música, seja por outro sentido, mais específico.
O que um disco como esse comprova é o quanto sua música já se transformou naquela arte que não tem mais dono, virou patrimônio comum. Ela sente e não sente saudade. Porque nossa saudade maior, nesse ponto, é pela própria música de Zé Miguel Wisnik, que a voz de Eveline sacia até a próxima vez.


Ponte Aérea
    
Artista: Eveline Hecker
Lançamento: Biscoito Fino
Quanto: R$ 20
(www.biscoitofino.com.br)



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