São Paulo, quinta-feira, 18 de março de 2004

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TEATRO

No espetáculo "Tartufo", atrizes desempenham bem o seu papel, mas elenco masculino insiste no baixo cômico

Montagem dilui Molière em leitura superficial

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Marco do classicismo francês, uma montagem de "Tartufo" pode consagrar diretores. O falso devoto que se instala na casa do burguês Orgonte para lhe roubar mulher e fortuna é um personagem tão forte que acabou ganhando vida própria, se tornando um sinônimo de hipocrisia. Na estréia, Molière se arriscava ao máximo, em uma corte de Louis 14 infiltrada por tartufos, com um tartufo gordo e brutal, vindo diretamente da commedia dell'arte.
Louis Jouvet, no pós-guerra, inovou ao criar um Tartufo magro e sedutor, próximo de Don Juan, muito mais perigoso, portanto. Décadas depois, Jean-Pierre Vincent reatualizou a insolência de Molière ao fazer, em plena União Soviética, referências abertas à KGB, polícia secreta do regime socialista que acolhia a montagem na expectativa de uma inócua peça francesa de rendas e ingenuidades.
Tonio Carvalho vinha de uma bela montagem com Eduardo Moscovis e Ana Lúcia Torre: "Norma" fazia uma denúncia da hipocrisia homofóbica com delicadeza e intensidade.
Ágil e sedutor, Moscovis teria o tipo para o "Tartufo Magro", e a inteligência de Torre a habilita à função de Dorina, a criada que desmascara o ridículo com seu bom senso insolente.
Partindo da tradução castiça de Guilherme Figueiredo, em alexandrinos, esta montagem de Tartufo tinha excelentes pontos de partida.
Infelizmente, acabou concedendo à leitura mais rasa. O desafio do texto rimado pede uma desenvoltura e uma inteligência que Ana Lúcia Torre possui de sobra, mantendo uma alta eficácia para sua Dorina, seguida de perto por Risa Landau (sra. Pernela) e Vanessa Gerbelli (Elmira). Marcando seus "tipos" respectivos sem cair na caricatura, com precisão e com simplicidade, essas atrizes acabam por permitir que Molière fale com a platéia.
Os demais atores, no entanto, cedem ao mais fácil. Sem a possibilidade de introduzir "cacos" em um texto rimado, eles contribuem com sons guturais e também com trejeitos, espasmos, diluindo a inteligência de Molière em uma irritante disputa de foco. Roubam a cena clássica para instaurar o baixo cômico, que é altamente eficiente, porém inócuo. A platéia gargalha com o que Molière tem de mais superficial.
E o ator Eduardo Moscovis, no entanto, em alguns breves momentos de sinceridade, deixa entrever o enorme impacto que poderia ter um Tartufo mais interiorizado, se não se desautorizasse sistematicamente em demonstrações óbvias de hipocrisia. E, contudo, o discurso final, elogiando a justiça do Rei, acaba por captar por um breve momento a inteligência do público, que entende como Molière teve que conceder no último momento, como uma vitória da hipocrisia.
Mas é tarde demais. O mau gosto já se espalhou pelo espetáculo como uma mancha de óleo, nos figurinos chamativos, na trilha sonora arbitrária (por que a referência nordestina sistemática a cada entrada de Orgonte?).
Carvalho não se arriscou, desperdiçando assim a oportunidade de se consagrar a partir de uma montagem de "Tartufo". Ganha, pelo menos, um sucesso de público. Mas é uma pena.


Tartufo
  
De: Molière
Direção: Tonio Carvalho
Com: Eduardo Moscovis, Ana Lúcia Torre, Vanessa Gerbelli
Onde: teatro Cultura Artística - sala Rubens Svernier (r. Nestor Pestana, 196, tel. 3256-0223); sáb. às 21h; dom. às 18h
Quanto: R$ 40 e R$ 50



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