|
Texto Anterior | Índice
MÚSICA ERUDITA
A diferença da Hungria contra a nossa mesmice
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
A temperatura e a chuvinha lembravam Budapeste.
Na semana de lançamento do romance "Budapeste" de Chico
Buarque, tudo já parece um pouco a Hungria. Mas a procissão da
Virgem, em plena praça Roosevelt -à porta do teatro dos Satyros e a meia quadra de uma dúzia
de boates da pesada-, era definitivamente brasileira. Tudo isso
ganhou outro relevo dez minutos
de Stravinsky adiante, na versão
legitimamente magiar da Orquestra do Festival de Budapeste, regida por Iván Fischer.
Foi um Stravinsky pouco conhecido: "Jogo de Cartas", música
encomendada pelo American Ballet, de Balanchine, para um balé
de 1937. Pouco conhecido porque
pouco tocado; e pouco tocado
porque muito difícil, até para os
padrões do compositor de "Petrouchka" e da "Sagração". Partituras como essas foram de grande
dificuldade na década de 1910; hoje qualquer orquestra de escola
toca. "Jogo de Cartas" não.
Aos 55 anos, Stravinsky escrevia
música de um virtuosismo incrível -não só (como sempre) de
métrica e orquestração, mas também de outro plano da arte. Na
falta de um termo menos antipático, pode-se chamar de inteligência. As "três rodadas" do "Jogo de
Cartas" vão sobrepondo seus
quebra-cabeças, no maior bom
humor. É um pôquer musical,
que faz pensar em Rossini, mas
um Rossini cubista. Precisa uma
orquestra húngara para entender
como se faz.
Levou cinco minutos aquecendo. Daí para a frente, a orquestra
deu um show. O som deles tem algo muito estranho, para quem está acostumado às sinfônicas americanas e da Europa do Oeste. No
Leste, alguma coisa se preservou,
ao longo das décadas de regime
comunista. Os metais, por exemplo, têm bem menos brilho do
que hoje se espera. Já os clarinetes
vêm abertos. As cordas vibram no
registro mais escuro e mais quente. Os fagotes são demais.
O próprio regente Iván Fischer
exibe sua dose de idiossincrasia.
Rege desengonçado, rege feio.
Mas como rege bem! Iluminou o
Stravinsky por dentro, como se
fosse simples. Às vezes chacoalha
inteiro: chacoalha a cabeça, a mão
esquerda, a batuta, até pula. Depois sossega e estamos conversados. Não hesita meia colcheia.
Se o Stravinsky foi tudo isso, a
"Suíte de Danças" do compatriota
Béla Bartók (1881-1945) foi ainda
melhor. O duo de tuba e piano, no
começo, seguido de um quarteto
de violinos acompanhado por doçuras dos violoncelos, já valeria a
noite. Mas isso seria desprezar os
acordes paralelos, alternando sopros e cordas, no quarto movimento. E o sincopado dos metais,
no fim, arrebentando a boca do
trombone. Ninguém acentua Bartók como eles, por motivos linguisticamente óbvios.
O que foi mesmo que tocaram
na segunda parte? Ah, sim: a "Nona" de Schubert (1797-1828). Não
foi ruim, de modo algum. Só a disposição da orquestra, com flautas,
clarinetes e oboés à frente das cordas, já mereceria estudo. É que,
depois de Stravinsky e Bartók,
ninguém tem cabeça para Schubert. O ouvido até vai, mas a cabeça não. Quando a cabeça vai, o coração fica.
Regra ingrata da música: até nas
excelências pode haver mesmice.
Já uma orquestra dessas é interessante até quando as coisas não estão cem por cento. Praça Roosevelt, Satyros, Virgem; Budapeste,
Fischer, Bartók. Tudo entendido.
Istfcik que é globaliszabó.
Orquestra do Festival de Budapeste
Onde: teatro Cultura Artística (r. Nestor
Pestana, 196, tel. 3258-3344)
Quando: hoje, às 21h
Quanto: de R$ 120 a R$ 280
Patrocinadores: Bovespa, Telefônica,
Votorantim e Companhia Brasileira de
Liquidação e Custódia.
Texto Anterior: Balé da Cidade exibe quatro coreografias Índice
|