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São Paulo, quinta-feira, 18 de setembro de 2003

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MÚSICA ERUDITA

A diferença da Hungria contra a nossa mesmice

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

A temperatura e a chuvinha lembravam Budapeste. Na semana de lançamento do romance "Budapeste" de Chico Buarque, tudo já parece um pouco a Hungria. Mas a procissão da Virgem, em plena praça Roosevelt -à porta do teatro dos Satyros e a meia quadra de uma dúzia de boates da pesada-, era definitivamente brasileira. Tudo isso ganhou outro relevo dez minutos de Stravinsky adiante, na versão legitimamente magiar da Orquestra do Festival de Budapeste, regida por Iván Fischer.
Foi um Stravinsky pouco conhecido: "Jogo de Cartas", música encomendada pelo American Ballet, de Balanchine, para um balé de 1937. Pouco conhecido porque pouco tocado; e pouco tocado porque muito difícil, até para os padrões do compositor de "Petrouchka" e da "Sagração". Partituras como essas foram de grande dificuldade na década de 1910; hoje qualquer orquestra de escola toca. "Jogo de Cartas" não.
Aos 55 anos, Stravinsky escrevia música de um virtuosismo incrível -não só (como sempre) de métrica e orquestração, mas também de outro plano da arte. Na falta de um termo menos antipático, pode-se chamar de inteligência. As "três rodadas" do "Jogo de Cartas" vão sobrepondo seus quebra-cabeças, no maior bom humor. É um pôquer musical, que faz pensar em Rossini, mas um Rossini cubista. Precisa uma orquestra húngara para entender como se faz.
Levou cinco minutos aquecendo. Daí para a frente, a orquestra deu um show. O som deles tem algo muito estranho, para quem está acostumado às sinfônicas americanas e da Europa do Oeste. No Leste, alguma coisa se preservou, ao longo das décadas de regime comunista. Os metais, por exemplo, têm bem menos brilho do que hoje se espera. Já os clarinetes vêm abertos. As cordas vibram no registro mais escuro e mais quente. Os fagotes são demais.
O próprio regente Iván Fischer exibe sua dose de idiossincrasia. Rege desengonçado, rege feio. Mas como rege bem! Iluminou o Stravinsky por dentro, como se fosse simples. Às vezes chacoalha inteiro: chacoalha a cabeça, a mão esquerda, a batuta, até pula. Depois sossega e estamos conversados. Não hesita meia colcheia.
Se o Stravinsky foi tudo isso, a "Suíte de Danças" do compatriota Béla Bartók (1881-1945) foi ainda melhor. O duo de tuba e piano, no começo, seguido de um quarteto de violinos acompanhado por doçuras dos violoncelos, já valeria a noite. Mas isso seria desprezar os acordes paralelos, alternando sopros e cordas, no quarto movimento. E o sincopado dos metais, no fim, arrebentando a boca do trombone. Ninguém acentua Bartók como eles, por motivos linguisticamente óbvios.
O que foi mesmo que tocaram na segunda parte? Ah, sim: a "Nona" de Schubert (1797-1828). Não foi ruim, de modo algum. Só a disposição da orquestra, com flautas, clarinetes e oboés à frente das cordas, já mereceria estudo. É que, depois de Stravinsky e Bartók, ninguém tem cabeça para Schubert. O ouvido até vai, mas a cabeça não. Quando a cabeça vai, o coração fica.
Regra ingrata da música: até nas excelências pode haver mesmice. Já uma orquestra dessas é interessante até quando as coisas não estão cem por cento. Praça Roosevelt, Satyros, Virgem; Budapeste, Fischer, Bartók. Tudo entendido. Istfcik que é globaliszabó.


Orquestra do Festival de Budapeste    
Onde: teatro Cultura Artística (r. Nestor Pestana, 196, tel. 3258-3344)
Quando: hoje, às 21h
Quanto: de R$ 120 a R$ 280
Patrocinadores: Bovespa, Telefônica, Votorantim e Companhia Brasileira de Liquidação e Custódia.



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