São Paulo, quinta-feira, 18 de setembro de 2008

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Crítica/erudito

Savall brilha e anula frieza em teatro

À frente do Hespèrion XXI e acompanhado pela Capela Real da Catalunha, virtuose da viola da gamba comprova originalidade

Izilda França/Divulgação
Os músicos no concerto do Hespèrion XXI, com direção de Jordi Savall (sentado, na extrema esq.), anteontem no teatro Abril

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Uma verdade difundida da musicologia estabelece proporções diretas entre vertentes de excelência da música popular ao longo do século 20 e o fenômeno social e cultural da mestiçagem -especialmente o cruzamento de correntes africanas e européias no solo do Novo Mundo. Que esse processo não é só da música popular e que de fato começa muito antes era o mote do concerto do Hespèrion XXI, acompanhado pelas vozes da Capela Real da Catalunha, sob a direção de Jordi Savall, anteontem no teatro Abril.
O título do concerto serviria como nome de um ensaio sobre o assunto: "A Rota do Novo Mundo- Músicas de Fogo e Ar: Homenagem à Mestiçagem Musical - Encontro de Músicas e Culturas na Península Ibérica e na Ibero-América".
Só isso já basta para comprovar a originalidade de propósitos de Savall, que segue sendo, por consenso, um dos maiores, senão o maior virtuose mundial da viola da gamba. Cada programa que ele dirige tem alto interesse musical e interesse para além da música também, até porque a música, para ele, jamais se esgota em si.
Ninguém diria que os compositores reunidos no programa merecem figurar entre os maiores gênios da alta renascença, ou do baixo barroco. A maior parte não é conhecida nem dos especialistas (nomes como Bartolomeu Cáceres ou frei Filipe da Madre de Deus); e muito do que se ouviu não chega a ser memorável individualmente. Mas o conjunto é interessantíssimo, tanto mais em contraste com pequenos mestres ibéricos, como Luis del Milà e Diego Ortiz.
O interesse vem justamente desses cruzamentos musicais pouco conhecidos entre África, Península Ibérica e Novo Mundo. Só assim se entende as síncopes das "negrillas", "guarachas", "mestizos", que para nossos ouvidos mestiços soam tão naturais.
Assim se aceita, com a maior facilidade, o acento das castanholas, sempre na última semicolcheia do compasso, no "Dindirindin" de Mateo Flecha (1481-1553); ou os ritmos de guarânia (1-2-3, 1-2-3/ 1-2, 1-2, 1-2) em Juan Garcia de Zéspedes (c. 1619-78), invertidos (1-2, 1-2, 1-2/ 1-2-3, 1-2-3) na levada náuatle de "Tleycantimo choquiliya", do português Gaspar Fernandes (1566-1629).
Vale citar a erudita nota de programa de Rui Vieira Nery (Univ. de Évora): "Quando um "villancico" dava voz a personagens africanos falando numa nascente versão crioula do castelhano ou do português, misturada com palavras soltas em banto ou ioruba, tendia a incorporar os fortes esquemas rítmicos [...] das danças africanas, assim como efeitos antifonais [alternância entre solistas e o conjunto] dessa mesma tradição". Não custa ressaltar: estamos falando do século 16.
Foi grande pena a ausência da soprano Montserrat Filgueras, por motivo de saúde. Criadora com Savall, em 1974, do Hespèrion XXI, ela teria cantado as cantigas amorosas, que ficaram faltando para compor o panorama, tanto musical quanto afetivo.
Mas, se o concerto não teve todo o calor que sugeria, isso se deve mais às vastidões do teatro Abril -substituto extemporâneo do Cultura Artística, tristemente incendiado. Mesmo com a amplificação discreta (ou nem tão discreta, na segunda parte), os dez instrumentistas e seis cantores pareciam distantes, estranhamente transplantados de algum reino da imaginação. A própria platéia dava impressão de não saber direito como aplaudir, fora de seu habitat.
Nada disso importa para a lembrança do que se ouviu. Um músico como Jordi Savall cria seu próprio mundo por onde passa. E esse mundo é o que fica, afinal -o que ficará-, quando tudo mais no mundo tiver passado: teatros, platéias, cada um de nós.

Avaliação: bom



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