São Paulo, segunda-feira, 19 de julho de 2004

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GASTRONOMIA

Manifesto de Ruy Castro, samba-enredo de Moacyr Luz e cardápio de Ana Soares exaltam a comida de boteco

Bar prepara ode à "baixa gastronomia"

JOSIMAR MELO
COLUNISTA DA FOLHA

Uma espécie de evento multimídia envolve neste mês um item pouco estudado da cultura popular: a comida de botequim. A manifestação ocorre no bar Pirajá, que decretou que ali, todo ano, este será o Mês da Baixa Gastronomia. E para sacramentá-lo, lançou sábado um manifesto, um samba e um cardápio (que entra hoje em vigor) com o tema "Delírios da Baixa Gastronomia" em oposição à alta gastronomia, que seria a antítese da comida de boteco.
Seria, mas não é bem assim, embora o proselitismo militante do "movimento" passe esta impressão. O manifesto foi redigido pelo escritor carioca Ruy Castro ("O Anjo Pornográfico"), que, para compô-lo, reuniu uma passagem de seu livro "Carnaval no Fogo" e um artigo de revista. O manifesto desanca a alta gastronomia, aquela dos restaurantes refinados.
Nestes, segundo ele, "a comida lembra uma linda instalação minimalista, com um design irresistível (...)"; mas não passa de "um bifinho muito do mixuruca ou um insosso peixinho, uma massa quase sempre medíocre ou uma microporção de arroz "selvagem" e aí está o segredo -belas firulas com molho de cassis e talinhos de nirá circundando os quase invisíveis ingredientes".
Castro defende o que batizou, em "Carnaval no Fogo", de baixa gastronomia: "os pratos típicos dos botequins, quase sempre em quantidade suficiente para alimentar duas pessoas pelas próximas 24 horas e que desmoralizam as estatísticas sobre a fome no terceiro mundo. (...) Os simples nomes dos pratos já são uma ode ao colesterol, mas quem quer viver para sempre?".
O manifesto é acompanhado por uma composição inédita do compositor Moacyr Luz. Gravada em ritmo de samba-enredo, a melodia é envolvente e a letra abre o apetite (leia trecho nesta página).
Prosa, verso e música ficariam vazios, num boteco, sem outra arte, a culinária. O Pirajá conclui sua homenagem à Baixa Gastronomia com um cardápio inspirado em sete sambas onde a cozinha é evocada, cada um dando nome a um prato. "No Pagode do Vavá" (Paulinho da Viola) é o feijão carioca com mocotó, alheiras, lingüiça, codequim, paçoca de carne-seca e jiló. "Linha de Passe" (João Bosco, Paulo Emílio e Aldir Blanc) é o bolinho de angu recheado com rabada...
Só que para executar essas interpretações da "baixa gastronomia" o Pirajá teve que abandonar o flerte com a demagogia (comum em manifestos inflamados) e se render ao suposto inimigo: o bar chamou uma refinada chef de cozinha, Ana Soares (do bufê Mesa III), para elaborar os pratos. Curvaram-se assim à união óbvia e desapaixonada entre todas as manifestações de uma boa arte.
Seria tão preconceituoso um gourmet pedante desprezar um pastelzinho alegando que é frito em óleo de três dias quanto o gourmet popular desprezar (por não ter acesso ou sensibilidade) a alta gastronomia, alegando que vem pouca comida ou que é mera decoração. A alta gastronomia, feita com minuciosa técnica, é tão importante quanto a cozinha popular, feita com pleno coração e ambas com sensibilidade.


MÊS DA BAIXA GASTRONOMIA. Onde: bar Pirajá (av. Brigadeiro Faria Lima, 64, Pinheiros, tel. 3815-6881).


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