São Paulo, domingo, 20 de outubro de 2002

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26ª MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SP

O espanhol Fernando Trueba fala de "El Embrujo de Shangai", seu mais novo filme, que revive a Barcelona dos anos 40 pelo olhar de dois adolescentes cujos pais desapareceram na guerra

Desilução espanhola

SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

Xangai é uma paisagem em preto-e-branco. As mulheres vestem-se à moda oriental -mas falam espanhol- e são perigosamente cortejadas por ex-agentes nazistas disfarçados de milionários.
Xangai é assim, pelo menos na imaginação de Dani e Susana, dois desolados adolescentes espanhóis que vivem na Barcelona de 1948, cidade que tenta se reerguer depois dos anos de desgaste da Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Ambos protagonizam "El Embrujo de Xangai" (O Feitiço de Xangai), o mais recente filme do espanhol Fernando Trueba, 47.
O pai de Dani morreu no conflito. O pai de Susana, anarquista, fugiu para a França. Depois, ela acredita, ele teria ido a Xangai para uma perigosa missão secreta. O certo é que nunca mais voltou. Imaginar as aventuras deles e de outros heróis perdidos na guerra é a única coisa que dá razão à vida dos jovens desta Barcelona que parece habitada apenas por crianças órfãs, viúvas e veteranos feridos em combate.
Trueba (Oscar de filme estrangeiro por "Sedução", em 1994) falou à Folha sobre "El Embrujo de Xangai", adaptação para as telas de romance homônimo do catalão Juan Marsé. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Folha - O garoto Dani tem um destino trágico. Ele não conquista sua amada, descobre que o herói que constrói em sua imaginação é uma ilusão e ainda perde seu melhor amigo. Qual é sua descoberta?
Fernando Trueba -
Que a vida é dor. Como diz a canção, "tristeza não tem fim, felicidade sim". Mas, ao mesmo tempo, os momentos passados junto ao capitão Blay, seu amigo e veterano da guerra, as tardes junto com Susana, assim como o cheiro de seu corpo, são sua educação sentimental. A única coisa que sobra da vida é também a única coisa que sobra dos filmes: momentos inesquecíveis.

Folha - Por que a parte da história que se passa em Xangai tem uma ambientação típica de filme noir?
Trueba -
É a Xangai que meninos de 15 anos poderiam imaginar na Barcelona dos anos 40. O único que sabem a seu respeito é o que viram no cinema do seu bairro. Ou seja, pensam que ela é como costumava aparecer nos filmes de Hollywood, sempre dublados em espanhol, que é como se viam todos os filmes na época.

Folha - Como foi adaptar o livro para as telas?
Trueba -
É um filme de corte clássico. Meus filmes são pouco modernos, sou um tipo antiquado. O moderno é a apoteose do subjetivo, do "eu". Ser moderno é golpear a cabeça do público. Eu sou muito respeitoso. Quero que as pessoas se apaixonem pelos personagens, não por mim.

Folha - Os relatos da Guerra Civil sempre foram carregados de romantismo. Acha que a tendência é que exista mais distanciamento, à medida que o tempo passa?
Trueba -
Isso está acontecendo, mas eu gostaria que não se perdesse nunca a paixão. Com tudo o que havia de ingenuidade ou erro naquelas interpretações. Sou maniqueísta. Creio que há bons e maus. Que a esquerda e a direita seguem existindo. A direita crê que o mundo lhe pertence, é como um menino rico e malcriado que é capaz de quebrar seu brinquedo porque é seu, antes de deixar que outro menino brinque.
A esquerda é composta por aqueles que, de uma posição ou outra, às vezes sem ideologia, por motivos pessoais ou até religiosos, tratam de fazer com que o mundo seja melhor.
Por isso a direita nunca decepciona, sabemos o que quer, a destruição do planeta para o benefício de uns poucos desalmados. A esquerda, por sua vez, quase sempre decepciona porque as pessoas se cansam de lutar, ou traem seus ideais ou, ao encontrar o suficiente para comer, já não lhes resta tempo para arrumar o mundo.

Folha - A Barcelona do pós-guerra é um personagem à parte no filme. Como foi reconstruí-la?
Trueba -
Barcelona é protagonista. Especialmente o bairro da Gracia. Levei o bairro para seu próprio passado, com a ajuda das pessoas que vivem lá hoje. Os mais velhos colaboraram. Houve uma senhora que, ao ver o cinema que reconstruímos na praça, achou que estava tendo uma alucinação. Fiz questão que a reconstrução fosse minuciosa. Até os filmes em exibição no cinema do bairro eram os que passavam em Barcelona no verão de 48. Certamente, eram bem melhores do que os que estão exibindo lá hoje.



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