|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CINEMA - CRÍTICA
Documentários em cartaz levam à reflexão
HAROLDO CERAVOLO SEREZA
da Reportagem Local
Há três documentários sobre o
Brasil em cartaz em São Paulo:
"Santo Forte", "Fé" e "Os Carvoeiros". Assistir a qualquer um
deles faz pensar nos problemas
brasileiros; assistir aos três obriga
a refletir sobre o próprio gênero,
talvez o mais genuíno, num país
periférico como o Brasil.
Explica-se: a grande marca do
cinema norte-americano é o total
descompromisso com a realidade, com o cotidiano. Só nos Estados Unidos são feitos filmes de
exaltação do Estado e do capital
convincentes, que nos transmitem a sensação de verdade. E,
quanto mais fantástico, mais
convincente. Um exemplo dessa
singularidade é "Independence
Day". Não se imagina um cineasta brasileiro -ou francês ou inglês- contando a história de
uma guerra interplanetária cujo
principal protagonista é o presidente de qualquer uma dessas
-ou de outras- nações.
A realidade costuma ser matéria-prima dos cinemas que não o
norte-americano, ainda que se
tratando de filmes de ficção. É o
caso de "Quando Tudo Começa",
em cartaz no Espaço Unibanco
-a crise da escola pública francesa é só mais uma manifestação
do empobrecimento da população e do descaso da burocracia,
quer nos dizer o diretor Bertrand
Tavernier.
A produção francesa recente,
mesmo que marcada por preocupações de uma classe média decadente, vira-se cada vez mais para a periferia, povoada por jovens
desocupados e cães violentos.
O documentário, por ter na realidade não apenas a matéria-prima, mas também seu objetivo final, pode ser, assim, o cinema por
excelência em países que não os
EUA. Arriscaria a dizer que
quanto mais periférico e mais
contraditório o país, mais o bom
cinema de ficção tende a se assemelhar com o documentário.
Mas o que é um documentário?
É um cinema de compromisso
total com a realidade, da origem
ao produto final. Um cinema cujo objetivo primeiro é expressar
as contradições do mundo real.
Não é tarefa fácil. Antes de rodar "Santo Forte", Eduardo Coutinho, em entrevista à revista
"Sexta-Feira" (nº 2), feita por
pós-graduandos em antropologia, disse o seguinte: "O cara pode
ser um camponês da Amazônia,
mas ele te vê e intui o que você
quer ouvir. Eles são muito mais
vivos que todo cineasta que vai
procurá-los". Para superar esse
problema, é preciso estar aberto a
todo o tipo de resposta. "Estar
aberto para ouvir que é bom ou
ruim é não desqualificar previamente a opinião dessa pessoa",
completou.
"Santo Forte" é um filme sobre
religião sem cenas de rituais. A
realidade contada é aquela narrada pelos personagens. O compromisso com a verdade expressa
pela palavra é tanto que a edição
não se importa com cortes descontínuos. Dançarinas de boate,
aposentados, praticantes das
mais diversas religiões explicam
suas relações cotidianas com os
deuses e os santos.
"Resolvi dar prioridade total ao
discurso dos personagens. Por
uma razão simples: se eu não fizesse isso, ninguém ia fazer. Ninguém está interessado em apostar assim radicalmente na palavra", disse Eduardo Coutinho em
entrevista publicada na Folha.
A frase de Coutinho se aplica
perfeitamente ao documentário
"Os Carvoeiros", de Nigel Noble,
que investe na imagem. Os protagonistas do filme têm poucas
oportunidades de falar. Nem lhes
foram dirigidas perguntas mínimas. As conversas entre a equipe
de filmagem e os carvoeiros param, em geral, nas primeiras perguntas.
A contradição evidente entre o
carvoeiro e a indústria siderúrgica (e a que utiliza o aço) é minimamente explorada -chega,
por vezes, a dar a impressão de
que surge apenas para que o filme
não seja criticado por evitá-la.
A opção de "Os Carvoeiros" pela imagem afasta-o da realidade.
Velhos carregando toras dentro
de fornos cheios de fuligem sugerem que o trabalho não apresenta
tantos riscos (não há doentes no
filme); crianças sujas carregando
tijolos podem também significar
que elas têm capacidade física para tanto, só que ganham pouco; a
escola perde 80% dos alunos,
apesar da bolsa-escola, e terminamos o filme sem saber ao menos que explicação a professora
dá para o fato.
O cineasta parece ter encontrado uma humanidade que não esperava nos fornos de carvão. Surpreso, em vez de explorá-la, contentou-se em ficar surpreso -e
maravilhado pelas fotografias
que poderia fazer.
"Fé", de Ricardo Dias, fica no
meio do caminho entre os dois.
Pretende-se um grande painel
da religião brasileira. Percorre caminhos conhecidos, de imagens
conhecidas (Círio de Nazaré, cultos da igreja Renascer, terreiros
de umbanda, Vale do Amanhecer). Mas não se contenta com a
imagem, embora a priorize.
Também ouve seus personagens
com decência, mas com uma diferença: não consegue envolvê-los. E, sem esse envolvimento, o
filme não realiza a verdade que
busca, embora a busque com sinceridade.
Avaliações:
Santo Forte
Fé
Os Carvoeiros
Texto Anterior: Música: Festa do rap é hoje no Via Funchal Próximo Texto: O bom do dia: Bergman usa o teatro para falar de si Índice
|