São Paulo, Segunda-feira, 20 de Dezembro de 1999


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CINEMA - CRÍTICA
Documentários em cartaz levam à reflexão

HAROLDO CERAVOLO SEREZA
da Reportagem Local


Há três documentários sobre o Brasil em cartaz em São Paulo: "Santo Forte", "Fé" e "Os Carvoeiros". Assistir a qualquer um deles faz pensar nos problemas brasileiros; assistir aos três obriga a refletir sobre o próprio gênero, talvez o mais genuíno, num país periférico como o Brasil.
Explica-se: a grande marca do cinema norte-americano é o total descompromisso com a realidade, com o cotidiano. Só nos Estados Unidos são feitos filmes de exaltação do Estado e do capital convincentes, que nos transmitem a sensação de verdade. E, quanto mais fantástico, mais convincente. Um exemplo dessa singularidade é "Independence Day". Não se imagina um cineasta brasileiro -ou francês ou inglês- contando a história de uma guerra interplanetária cujo principal protagonista é o presidente de qualquer uma dessas -ou de outras- nações.
A realidade costuma ser matéria-prima dos cinemas que não o norte-americano, ainda que se tratando de filmes de ficção. É o caso de "Quando Tudo Começa", em cartaz no Espaço Unibanco -a crise da escola pública francesa é só mais uma manifestação do empobrecimento da população e do descaso da burocracia, quer nos dizer o diretor Bertrand Tavernier.
A produção francesa recente, mesmo que marcada por preocupações de uma classe média decadente, vira-se cada vez mais para a periferia, povoada por jovens desocupados e cães violentos.
O documentário, por ter na realidade não apenas a matéria-prima, mas também seu objetivo final, pode ser, assim, o cinema por excelência em países que não os EUA. Arriscaria a dizer que quanto mais periférico e mais contraditório o país, mais o bom cinema de ficção tende a se assemelhar com o documentário.
Mas o que é um documentário? É um cinema de compromisso total com a realidade, da origem ao produto final. Um cinema cujo objetivo primeiro é expressar as contradições do mundo real.
Não é tarefa fácil. Antes de rodar "Santo Forte", Eduardo Coutinho, em entrevista à revista "Sexta-Feira" (nº 2), feita por pós-graduandos em antropologia, disse o seguinte: "O cara pode ser um camponês da Amazônia, mas ele te vê e intui o que você quer ouvir. Eles são muito mais vivos que todo cineasta que vai procurá-los". Para superar esse problema, é preciso estar aberto a todo o tipo de resposta. "Estar aberto para ouvir que é bom ou ruim é não desqualificar previamente a opinião dessa pessoa", completou.
"Santo Forte" é um filme sobre religião sem cenas de rituais. A realidade contada é aquela narrada pelos personagens. O compromisso com a verdade expressa pela palavra é tanto que a edição não se importa com cortes descontínuos. Dançarinas de boate, aposentados, praticantes das mais diversas religiões explicam suas relações cotidianas com os deuses e os santos.
"Resolvi dar prioridade total ao discurso dos personagens. Por uma razão simples: se eu não fizesse isso, ninguém ia fazer. Ninguém está interessado em apostar assim radicalmente na palavra", disse Eduardo Coutinho em entrevista publicada na Folha.
A frase de Coutinho se aplica perfeitamente ao documentário "Os Carvoeiros", de Nigel Noble, que investe na imagem. Os protagonistas do filme têm poucas oportunidades de falar. Nem lhes foram dirigidas perguntas mínimas. As conversas entre a equipe de filmagem e os carvoeiros param, em geral, nas primeiras perguntas.
A contradição evidente entre o carvoeiro e a indústria siderúrgica (e a que utiliza o aço) é minimamente explorada -chega, por vezes, a dar a impressão de que surge apenas para que o filme não seja criticado por evitá-la.
A opção de "Os Carvoeiros" pela imagem afasta-o da realidade. Velhos carregando toras dentro de fornos cheios de fuligem sugerem que o trabalho não apresenta tantos riscos (não há doentes no filme); crianças sujas carregando tijolos podem também significar que elas têm capacidade física para tanto, só que ganham pouco; a escola perde 80% dos alunos, apesar da bolsa-escola, e terminamos o filme sem saber ao menos que explicação a professora dá para o fato.
O cineasta parece ter encontrado uma humanidade que não esperava nos fornos de carvão. Surpreso, em vez de explorá-la, contentou-se em ficar surpreso -e maravilhado pelas fotografias que poderia fazer.
"Fé", de Ricardo Dias, fica no meio do caminho entre os dois.
Pretende-se um grande painel da religião brasileira. Percorre caminhos conhecidos, de imagens conhecidas (Círio de Nazaré, cultos da igreja Renascer, terreiros de umbanda, Vale do Amanhecer). Mas não se contenta com a imagem, embora a priorize. Também ouve seus personagens com decência, mas com uma diferença: não consegue envolvê-los. E, sem esse envolvimento, o filme não realiza a verdade que busca, embora a busque com sinceridade.


Avaliações: Santo Forte      Fé    Os Carvoeiros 

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