São Paulo, quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

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Crítica/teatro/"Por Uma Vida Um Pouco Menos Ordinária"

Peça é retrato de geração desorientada

Leveza pop do título não atenua tom dramático do espetáculo, que flerta com o trágico; direção e elenco são destaques

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
Joelson Medeiros e Eduardo Moscovis em cena da peça assinada por Daniela Pereira de Carvalho


Celebrada indevidamente por um texto menor - "Renato Russo"-, Daniela Pereira de Carvalho vem, no entanto, se consolidando como dramaturga porta-voz de sua geração.
Tendo surgido como dramaturgista em "Vida, O Filme" (1992), dava forma aos improvisos d" Os Dezequilibrados, até assumir uma carreira solo e uma temática: a desnorteada juventude da elite carioca, que flerta com a contravenção.
Assim, a partir de 2004, com "Carpe Diem", "Tudo é Permitido" e "Não Existem Níveis Seguros Para o Consumo Dessas Substâncias", junto à Imprecisa Companhia e tendo Liliana Castro como alter ego, sua dramaturgia foi ganhando em concisão e profundidade.
Desta forma, "Por Uma Vida Um Pouco Menos Ordinária" é um ponto de chegada. Apesar de evocar uma leveza pop pelo título que remete a um filme de Danny Boyle e a chavões de blogs, a trama enfeixa o essencial do universo de Carvalho, em um tom de drama niilista que flerta com o trágico, sem perder o humor.
Adriano é um cellista de uma orquestra pública que se vicia em cocaína ao perder sua vocação artística. Por sua vez, Natália, sua irmã, tem que fechar seu bar e enfrentar a desilusão dos sonhos de adolescência.
Entre os dois, está o filho da empregada, que se tornou policial e traficante e ostenta o seu poder ao ciceronear a descida de Adriano ao inferno. Um tiro a esmo, por piada, acaba matando um chofer de táxi na rua em frente, de madrugada -e a celebração da inconsciência dá lugar a um beco sem saída.
A direção de Gilberto Gawronsky espertamente desloca o realismo da trama com recursos simbólicos. A constante referência ao consumo de pó é belamente estilizada por baldes que vertem areia como chuveiros sobre o elenco deleitado -e a repetição do efeito vai criando uma metáfora complexa, junto ao frágil castelo de areia do primeiro plano e à idéia de ampulheta, o tempo que se escoa irremediavelmente. Por outro lado, o efeito acaba chamando excessiva atenção para si mesmo.
É bem aproveitada também a decisão de não tirar nunca os atores de cena, mesmo quando o texto só indica a presença de dois personagens -o terceiro, ao continuar a reagir ao que é dito, reforça a impressão de "huis clos", de febre de cabana de uma geração viciada.
Nada disso teria efeito, naturalmente, se o elenco não fosse tão capaz. Liliana Castro tem uma beleza frágil e insolente, mas, ao romper de cara a quarta parede e direcionar seu monólogo para o público, exagera um pouco na teatralidade.
Já Eduardo Moscovis, sem romper a naturalidade, consegue se livrar da carga de galã de novela e faz de Adriano não um herói, mas um protagonista dilacerado, em busca de uma dignidade perdida. Por seu lado, Joelson Medeiros consegue uma verossimilhança indispensável para não cair nos trejeitos do "vilão". Seu personagem segue a ética do tráfico, sem discutir. Daniela Pereira de Carvalho faz não apenas o retrato de uma geração mas seu diagnóstico -sem nunca cair no maniqueísmo. Constata o vácuo para uma platéia que veio se divertir com "globais", e que percebe que o buraco do teatro é bem mais fundo.


POR UMA VIDA UM POUCO MENOS ORDINÁRIA
Onde:
Teatro Folha (av. Higienópolis, 618, piso 2, tel. 3823-2323)
Quando: sex., às 21h30; sáb., às 21h; dom., às 19h30; até 23/12
Quanto: de R$ 40 a R$ 50
Avaliação: bom


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