São Paulo, sábado, 21 de abril de 2007

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Crítica/teatro/"Vemvai - O Caminho dos Mortos"

Ritual indígena da Cia Livre é façanha no teatro brasileiro

Peça "antropológica" com Newton Moreno faz itinerário por cultos brasileiros, captando-os em dimensão poética

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
Peça "antropológica' com Newton Moreno faz itinerário por cultos brasileiros, captando-os em dimensão poética


SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Para os marubos da Amazônia, Vei Vai quer dizer "caminho da morte".
Que isso soe tão familiarmente em português como "vem e vai" é prova dessas simultaneidades que tornam nosso trânsito por aqui tão fascinante. Cibele Forjaz, à frente da Cia Livre, traçou um itinerário por cultos indígenas brasileiros, tentando resgatá-los enquanto poética, evitando habilmente o duplo perigo da pajelança para turista e do hermetismo intelectual.
Depois de mais de um ano estudando canibalismos ancestrais junto ao antropólogo Pedro Cesarino, como fazer valer o projeto de Oswald de Andrade de deglutir o outro para que ele se torne eu, operacionar o exótico em um culto pessoal?
Primeiro chamando o onipresente Newton Moreno, que também andava fascinado por canibalismo. A forma final do texto tirou muito proveito do seu humor habitual, que não ofusca um lirismo intenso, estabelecendo assim uma estratégia hábil. O público só se livra progressivamente da cidade que o controla pelas janelas panorâmicas do Sesc Paulista ao encarar o ridículo da falcatrua, o pajé de anúncio de jornal, que tenta conciliar angústias reais.
Aos poucos, Forjaz vai fazendo a ponte com o arquetípico, com sofisticados recursos de encenação. O alter ego do público se vê espelhado em um outro palco mais fundo, que por sua vez sonha com um outro ainda mais longe, e assim a platéia é conduzida pelas cinco camadas do caminho: enfrentar a morte, deglutir o oposto, deglutir o igual, fazer a travessia e ganhar o céu.
Em contagioso faz-de-conta, os atores se desdobram com enorme energia, com destaque para a serena liderança de Eduardo Gomes e de Lúcia Romano, que em uma arrepiante cena ritualística, remete à Bárbara do histórico "Calabar" de Chico Buarque.
Pelas idas e vindas entre o espetáculo profano e a tragédia sagrada de uma cultura em farrapos, o balanço final é uma síntese surpreendente. Seduz tanto o público médio que descobre no Brasil central uma Broadway renovada, quanto o especialista zeloso do respeito cultural.
Ao final, o cinismo distanciado é trocado com vantagens por um pungente e simples ritual de comunhão, com uma síntese poética inesquecível. "O Caminho dos Mortos", da Cia Livre, é uma façanha histórica do teatro brasileiro.

VEMVAI - O CAMINHO DOS MORTOS
Quando:
de sex. a dom., às 20h; até 27/5
Onde: Sesc Avenida Paulista (av. Paulista, 119, tel. 3179-3700)
Quanto: R$ 15
Avaliação: ótimo


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